segunda-feira, 21 de setembro de 2009

PROTOCOLO QUINTO

referente ao encontro de
15 de Setembro de 2009


Procedimento, substantivo masculino derivado de outro: processo. Modo de atuar, comportamento. Transformado em verbo vira proceder, que tem seus sentidos ligados a conduzir, agir sobre, instaurar processo... [1] Como instaurar um processo?
Em aula conversamos sobre a idéia de procedimento, da dificuldade que é criar jogos, exercícios e estímulos precisos de improvisação para que os atores criem. E não só aos atores: como pedir uma idéia de luz? Como pedir ao dramaturgo uma cena? Pede-se ou espera que ele traga?
Viewpoints? Treinamento de respiração grotowskiano? Energéticos? Você é diretor ou professor de interpretação? Nós temos tempo pra ficar alongando o dedo mindinho? Quem você pensa que é? Porque os cadernos de direção do Brecht não estão traduzidos? Analizo os texto e divido em unidades de Ação? Stanislavski e Michael Tchekov servem para processo colaborativo?
Ressaltamos a importância de, quaisquer que sejam as escolhas da direção quanto aos tipos de aquecimento, que não se perca a atitude de jogo frente à cena e ao processo. Atitude de jogo, entendo, é propor que qualquer improvisação ou exercício seja encarado ao mesmo tempo como trabalho sério e como laboratório de vivência coletiva real e descontraída. Instaurar processo é também instaurar atmosfera: como um arquiteto que trabalha com o tempo, vai do diretor fazer de seu processo um gozo coletivo ou o muro das lamentações.
E esse aspecto tem a ver não apenas com uma questão personalista, mas com aquela proposta da cena, com aquele projeto. Cabe instaurar um processo com danças, músicas e vinho em sala de ensaio para estudar teatro Nô? Pode ser que sim ou que não, mas parece fundamental que o diretor tenha uma espécie de sensibilidade mínima para perceber que certas atmosferas geram um determinado tipo de atitude cênica, inclusive. Atitude de jogo traduz-se, sempre que ouço a expressão, como exercício de escuta, seguida de proposição que, na síntese, geram um silêncio para uma nova escuta e o ciclo se fecha. Dialético?
Gostaria de debater também sobre um aspecto surgido em protocolo que se refere à qualidade do trabalho dos atores. Preguiça? Eu tenho preguiça sempre que na balança entre a inércia e o desejo da ação, a inércia prevaleça. Nesse sentido, não acho que seja uma característica dos atores a preguiça, mas de todo aquele que não está tão a fim assim de estar ali, em jogo.
Por outro lado, não esperemos confortavelmente que os atores tragam os estímulos e as coisas livremente, por conta própria. Isso até ocorre, mas acho sim que é função do diretor não simplesmente pedir uma cena a partir de um estímulo como também o aguçamento da curiosidade, quase como um processo de sedução. Percebo hoje que, quanto mais dentro do processo os atores estão, mas o tomam para si, o que faz com que as proposições vindas deles aumentem (não só em quantidade, mas também em qualidade) cada vez mais e não acho um problema ser uma função do diretor alimentar esse desejo. É um problema quando, ao invés de figura de sedução, o diretor praticamente tem que mandar os atores trazerem uma cena, um estímulo (relação patrão-empregado) ou, pior, quando o diretor implora por isso (relação de favor).
Outro aspecto é quanto ao tipo de improvisação.
“Improvisem sobre a idéia de deus” ou “improvisem um monólogo, sem sair da cadeira, de o que vocês acham da figura do deus-cristão no imaginário da sua mãe hoje em dia, falando sem variações de velocidade e intensidade”. Do muito vago ao hiper-concreto, improvisações podem ser trampolins ou prisões eternas. Entender isso é simples, mas na prática, no calor do ensaio, pensar numa idéia de improviso não é tão simples.

Sem o medo de cagar regra, vou fazer aqui um à parte como exemplo:
Em primeiro lugar um elemento concreto e uma situação, como “corda” e “o início do conto do bosque dos elfos”, depois um elemento dificultador “as cinco atrizes têm que estar em cena”, uma proposta interpretativa “medo e desejo” e uma delimitação objetiva “quinze minutos”. Assim, formo: “Gostaria que vocês improvisassem sobre o momento em que Maria entra no bosque dos elfos, e os medos e desejos decorrentes disso usando a corda, sendo que todas as atrizes tem que estar em cena. Quinze minutos, pode ser?”
Mas daí, uma problematização:
Vamos sair do logocentrismo, friccionar textos, linguagens, sair da improvisação sobre idéias. Ok, ok. De novo, elemento concreto “tecidos espalhados pelo chão”, ao invés de situação, elemento abstrato “música Elephant Gun” e a mesma proposta interpretativa. Assim: “Enquanto essa música toca, eu gostaria que vocês usassem esses panos e vestidos espalhados pelo espaço para compor imagens físicas sobre os medos e desejos da Maria ao entrar no bosque. As imagens podem ser individuais ou em relação”. E durante o exercício outras instruções “não se viciem na mesma imagem”, “fujam da zona cinza [2]”, ”guardem as imagens e sensações para registrar depois”. Findas as improvisações, registramos tudo.
Sei lá, deu certo no último ensaio.

Outra questão sobre o modo de conduzir é a linha tênue que separa o propositivo do impositivo. E não são só as palavras “façam” ou “proponho que”, mas também o jeito com que se fala e o momento. Tem a ver com entendimento de grupo e, de novo, com escuta.

É um diretor e quatorze atores ou quinze diretores? Aí, parece, está a diferença entre processo colaborativo e criação coletiva. Relembro aqui a cena do filme Manderlay do diretor Lars Von Trier: a personagem Grace está a uma mesa com os cidadãos de Manderlay propondo a democracia como sistema de organização daquela pequena fazenda e ali, diante daquela aparentemente generosa e ingênua idéia, cria-se o espaço mais cruel para a manifestação das piores arrogâncias e surtos de autoridade. Com uma cena, Lars Von Trier dá um golpe no centro disso que chamamos “democracia” e relativiza a forma de relação dos homens entre os homens e, com isso, poderíamos repensar nossos processos. Será que o coletivo não é também o espaço mais propício para a manifestação das tiranias? Nesse sentido, qual a importância – no caso colaborativo – do entendimento, por todo o grupo, das funções?
Os nossos atores sabem quais são as funções de um ator no processo colaborativo? Os dramaturgos, iluminadores... sabem quais são suas funções? Nós sabemos quais são as nossas funções como diretores? Nós sabemos quais as funções dos outros? Nesse sentido não me parece que existam regras pré-estabelecidas, mas que, ao contrário, essas regras tem que ser encontradas no jogo do próprio trabalho.
Na teoria é fácil. É fácil dizer as idéias não são impostas, que serão testadas. É fácil dizer que não há hierarquia e que chegamos ao fim da taylorização dos processo de criação, mas assim como o corpo demora mais pra entender que a cabeça, o coletivo demora mais pra entender do que os indivíduos. E mais: o entendimento de cada indivíduo do grupo de alguma coisa não significa o entendimento do grupo daquela coisa.
E daí entramos numa vasta discussão sobre autoridade porque a conquista dos espaços no colaborativo é feita dia a dia e depende de uma colocação de si mesmo nas funções do grupo. Quantas vezes não nos sentimos omissos em nossos processos, com medo de impor nossas idéias e projetos e deixando que “a voz divina do grupo” fale mais alto?
Quantas vezes não sentimos que, por estarmos deixando o grupo falar, uma outra pessoa (dramaturgo, iluminador, ator) começa a se colocar como diretor e assume um espaço que aparentemente é nosso, mas que temos medo de reclamar em nome da democracia, temerosos de vestir a máscara da autoridade? E tantas vezes nossa imaturidade ou mesmo falta de proposta nos faz deixar o processo seguir por outros caminhos que não tem nada a ver com nossas idéias artísticas e nossa visão de mundo. Por outro lado, como também não vetar as manifestações individuais de cada membro do grupo? Antônio Araújo afirma que:

Essa autoria, que se dá, - ainda que não exclusivamente -, por mecanismos de apropriação, torna altamente problemática uma atitude de proibição ou veto à exibição da obra individual. Na verdade, uma explicação para isso se encontra no fato de se tratar de uma obra individual sim, porém impregnada de impressões digitais alheias. [3]

E mais para frente, na mesma tese, completa:

A vontade do encenador é apenas uma entre várias, e no acontecimento-cena que o grupo quer instaurar, o seu papel não parece ser o de criação à fórceps de uma “unidade de ordem”. Ao contrário, sua contribuição é a de garantir o espaço de emissão das distintas vozes [...] [4]

Isto posto, cabe perguntar: a equipe sabe da sua função no colaborativo e das funções que cabem ao diretor?
Podemos escolher, parece-me, dois caminhos: chamar a ensaio a bíblia de Antônio Araújo (sem nenhuma ironia, apenas com o humor necessário) e pedir pra que todos leiam e entendam o que é processo colaborativo ou descobrir o que é colaborativo para aquele grupo naquele momento.
A primeira opção me parece a própria traição da idéia de processo em si, porque a idéia de colaborativo surge justamente em resposta a modelos pré-fabricados de fazer teatral. Assim, transformá-la num modelo parece uma contradição à priori. A descoberta pouco a pouco das funções e do lugar de cada um no processo não tem nada a ver com um espaço pacífico e cordial, mas com um lugar de tensão e que exige não só experiência e entendimento profundo das funções, mas também maturidade.
Com isso, espero não estar invalidando a própria experiência, erros e acertos, como lugar de aprendizado e nem afirmando que só um diretor mais velho possa se dar ao colaborativo. Estou apenas tentando fazer um exercício de reflexão sobre o lugar do colaborativo para nós, diretores-aprendizes, hoje.

O segundo tópico do encontro a que se refere este protocolo foram as tendências do teatro contemporâneo e a importância de repensar a própria noção de procedimento a partir de modelos não logocêntricos – esforço, para mim, ainda absolutamente difícil tanto comigo mesmo, quanto com meu grupo.
As décadas de 70 e 80 foram responsáveis por aproximar do teatro o universo recém-surgido das artes performativas e, com muita força, a transposição de barreiras principalmente entre o cinema, a música, as plásticas e as cênicas, o que motivou na arte o surgimento do que chamamos de intertexto. Chamamos atenção para isto: a importância de, em processo, testar a profusão de elementos de outros universos artísticos na construção das cenas e incorporá-los à dramaturgia de forma a criar interfaces e camadas de leitura justapostas, cujo diálogo não está dado de maneira direta, mas é construído na relação tempo-espaço a partir do olhar do espectador.
Essas inserções que trazem a cena movimentos líricos ou épicos, rompendo a estrutura dramática, inserções essas que Lerhmann caracteriza como tendência (ou estética?) pós-dramática, contribuiriam para a reconstrução das imagens, permitindo libertarmo-nos da tradição literária e lançarmo-nos num processo menos logocêntrico e centrado na própria imagem, recurso que tem sido cada vez mais utilizado na arte contemporânea e que Octavio Paz define primorosamente:

Épica, dramática ou lírica, condensada em uma frase ou desenvolvida em mil páginas, toda imagem aproxima ou conjuga realidades opostas, indiferentes ou distanciadas entre si. Isto é, submete à unidade a pluralidade do real.[5]

Depois de assistir a vídeos como os Eistein on the Beach disponíveis do youtube [6], ou cenas de espetáculos da coreógrafa e dançarina Pina Bausch, esse desejo por ir a o encontro dessas tendências aumenta cada vez mais. Isso sem falar na recente experiência de Quartett, uma peça que prima – além da fantástica performance da protagonista e do desenho de luz impecável – por uma intertextualidade potente. É como se, para o texto de Muller, Wilson tivesse criado paisagens abstratas onde o movimento é um luxo e onde a música propõe a linha dramática que nos conduz de uma atmosfera a outra. Em Wilson, vejo concretizada a afirmação de Octavio Paz de que “a modernidade é uma espécie de autodestruição criadora” [7]. Sobre isso, levantou-se a possibilidade de fazermos um grupo de estudos.
Mas daí botamos os pés no chão.
Como, além de todas as nossas crises, fazer esses outros textos se inserirem no campo do ensaio e do processo? Seguiremos o modelo de Wilson e criaremos os quadros para que os atores se insiram neles como bonecos? Se o fizermos, continuaremos tendo um processo colaborativo?
Antônio Araujo em sua tese coloca Bob Wilson justamente como oposto do que chama de processo colaborativo. No entanto, em aula, Bulhões nos fez pensar sobre um outro tipo de colaboratividade não com os atores mas entre os outros criadores (músicos, diretor, coreógrafo...) Eu conheço pouco dos processos de Wilson, mas pelo pouco que li no livro de Galizia, acho que podemos pensar duas coisas: ou assumimos que a colaboratividade do processo pode se dar em níveis diferentes e daí teríamos que ter estabelecido esses níveis, em acordo, antes de começarmos para que não vendamos gato por lebre ao convidar as pessoas para integrar nossos coletivos ou, por outro lado, paramos de achar que para ser bom tem que ser colaborativo e assumimos que o processo de Wilson tem que ser centralizador para obter o tipo de resultado plástico que ele quer.
E, nessa segunda opção, abarcamos um lugar da discussão sobre o colaborativo que é a relação entre o processo e o resultado, último tema deste protocolo. Vocês estão cansados, eu sei.
Que cenas podem ser apresentadas? Quanto da nossa intimidade o público pode ver? Cenas depoimento tem que ser mostradas? Estamos preparados nesta semana para mostrar o que temos que mostrar?
À priori, o professor Marcos Bulhões defendeu que pedagogicamente sim, temos que mostrar as cenas que estamos produzindo porque, lembramos, o objeto da aula não é o resultado estético dos trabalhos e nem as observações acerca da grande obra do diretor, mas a instauração da problematização dos processos. De fato, as considerações feitas nas análises pelos professores de direção acerca das cenas nos fazem pensar sobre os rumos do trabalho e, pelo menos no meu caso, transformam o próprio processo, pois são provocadoras de discussões no grupo. Além disso, tirar-nos da estabilidade aparente é sempre uma maneira de movimentar o processo e impedir que falseemos nossas idéias com acomodações do tipo “pronto, escolhemos o conto a ser trabalhado, agora vai ficar tudo bem”.
No entanto, assim como da vida, certas intimidades quando são mostradas causam situações que prejudicam o trabalho. Não é a toa que a palavra obscena (literalmente, “fora da cena”) existe. E muitas coisas obscenas são produzidas em ensaio. Coisas essas que movimentam o grupo, cavucam medos e desejos, mas que não devem ser mostradas. É trabalho do diretor perceber quais viram cenas, quais servem apenas como estímulo e quais servem apenas como negativas.
Me alonguei demais, mas logo no final do encontro passado falamos também sobre uma característica do protocolo do Tchello que, diferente dos outros, era mais autoral: sobre isso concluiu-se que, como procedimento, é fundamental que os protocolos sejam generosos como registro, o que não significa que possamos neles problematizar questões e omitir opiniões, lançando sementes pra futuras discussões em sala ou em nossos processos.
Para concluir, o clipe da música “Elephant Gun” do grupo Beirut que tem me atormentado e que tenho usado no processo não só pela letra, mas pelo vídeo e a melodia me trazerem a idéia de festa, coisa que eu acho que o teatro às vezes se esquece de ser.

http://www.youtube.com/watch?v=N-mqhkuOF7s

Elephant Gun – Beirut

If I was young, I'd flee this townI'd bury my dreams undergroundAs did I, we drink to die, we drink tonight

Far from home, elephant gunLet's take them down one by oneWe'll lay it down, it's not been found, it's not around

Let the seasons begin - it rolls right onLet the seasons begin - take the big king down

And it rips through the silence of our camp at nightAnd it rips through the night
And it rips through the silence of our camp at nightAnd it rips through the silence, all that is left is allThat I hide



Pedro Braga, 21 de Setembro de 2009.







[1] Dicionário Priberam de Língua Portuguesa.
[2] Zona cinza: conceito usado por Anne Boggart em The Viewpoints Book para o momento em que o ator está perdido da improvisação, o momento em que não sabe o que fazer, não sabe porque está ali. É caracterizado como momento de transição entre momentos de improvisação.
[3] ARAÚJO, Antônio Carlos de. A encenação no coletivo: desterritorializações da função do diretor no processo colaborativo. 2008.
[4] Idem.
[5] PAZ, Octavio. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva – 1996. p.38
[6] http://www.youtube.com/watch?v=b26E0D2pm1c
[7] PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro. (referência a confirmar) p.16

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