terça-feira, 29 de setembro de 2009

PROTOCOLO 6

Que música belíssima ouço no profundo de mim. É feita de traços geométricos se entrecruzando no ar. É música de câmara. Música de câmara é sem melodia. É modo de expressar o silêncio. O que te escrevo é de câmara.
CLARICE LISPECTOR, Água viva, Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 43.





Compor, composição, compositor.
Como por? Qual posição? Como compor?
Inserir e redescobrir. Tirar e reencontrar.

Música, imagem, texto, som, poesia, fala, barulho, cor.
Silêncio. Pausa. Discurso. Discurso. Pausa.
Silêncio.





Iniciamos a aula discutindo a questão da composição cênica. O jogo estabelecido entre imagem, texto e música. Criar um ambiente possível de imersão para o espectador, e não estou falando de um campo do pensar, mas sim permitir uma submersão na ação cênica. Quais as ferramentas utilizadas para alcançar esse estado de presença do espectador que ultrapassa o pensar instantâneo? Como encontrar a fronteira entre o logocêntrico e o abstrato? Uma fronteira extensa. E, possivelmente, sem fim.


-Composição Poético-musical

Pensamos então sobre a concepção e situação poético-musical da cena. Não só a música colocada no rádio ou cantada, mas a sonoplastia como um todo que junto com a fala cria uma musicalidade da cena.

Tal musicalidade pode ser composta por ruídos, barulhos, falas e principalmente o silêncio. É a atmosfera sonora da cena. São esses caminhos, dentre outros, que criam uma ambientação e transportam-nos para outro estado de presença que não a lógico cartesiano.
É descobrir como uma fala gera a poesia. Como uma poesia soa um som. Como um som gera a fala. Ou seja: a fala como poesia; som como poesia; e a poesia como som.

O espectador estará imerso num ambiente, escutando barulhos e ruídos, palavras e música, falas e silêncio. A sonoplastia como um todo que transporta esse espectador para esse “tal” outro lugar.

-Composição Imagética




Kandinsky



Quartett - Bob Wilson



A imagem nos transporta para outro lugar. Como utilizar da máxima potência imagética? Esquecemo-nos que existem meios tecnológicos para essas imagens terem uma potência eficaz para o espectador. A sensação de teatro pobre¹ nos permeia.

Como exemplo, temos os teatros gregos que usufruíam as mais diversas “multimídias” da época para os maiores e melhores efeitos. Contudo o que permaneceu na história, principalmente pela herança do logocentrismo acadêmico-universitário Renascentista, foram os textos de Sófocles. Ainda carregamos esse “peso” do texto e esquecemos que as mais diversas mídias estão para nos auxiliar e compor a potência poética da cena.




[1].Teatro pobre no sentido de ser pobre: vazio de sentido, roupas rasgadas, apenas conter um cajado como objeto de cena. E não “teatro pobre” contextualizado e defendido por Jerzy Grotowski.






Todas as artes têm um raciocínio, uma lógica estrutural. Há de se estudar essas lógicas em diversos parâmetros para iniciar um entendimento do acontecimento seja musical, visual ou cênico, o acontecimento artístico.

O pintor Wassily Kandinsky, como exemplo, trabalha com suas teorias filosóficas da cor e com a abstração das imagens. Suas pinturas tiveram também uma influência da música do compositor Arnold Schönberg, companheiro do seu trabalho por alguns anos. Percebe-se que não só nas artes cênicas há uma composição, a pintura já ultrapassa a composição das tintas. Vê-se música e poesia nos quadros de Kandinsky.

Na imagem viva cênica tais fronteiras de composição não tem fim...

Vemos em Bob Wilson a imagem repleta de cores e exatidão. A demora para montagem de um palco e afinação dos refletores nos mostra que a imagem ainda tem sua importância e vigor. No jogo de luz, cor e desenho da cena o encenador nos encaminha para uma presença, como espectadores, que ultrapassa o logocentrismo.


"A cor ajuda a exprimir a luz; não o fenômeno físico, mas a única luz que existe de fato – a do cérebro do artista.

Cada época traz consigo sua luz própria, seu sentimento particular do espaço, como uma necessidade. Nossa civilização, mesmo para quem nunca andou de avião, trouxe uma nova compreensão do céu, da vastidão, do espaço.

(...) Mas o desenho e a cor não passam de uma sugestão. Por meio da ilusão², eles (artistas) devem provocar no espectador a sensação de posse das coisas. Mas isso só ocorre na medida em que o artista é capaz de se auto-sugestionar e de passar essa sugestão para sua obra e para o espírito do espectador. Há um provérbio chinês que diz: quando desenhamos uma árvore, devemos, ao mesmo tempo, sentir que estamos crescendo."


HENRI MATISSE – “Escritos e conversas sobre a arte”. A pintura, vol. 9: O desenho e a cor, São Paulo, editora 34, 2006




A visualidade, como no caso de Kandinski e de Bob Wilson, cria uma identidade artística. Conseguimos enxergar os artistas em suas obras. Essa identidade, espontânea e verdadeira, é um princípio para exprimirmos aquilo que realmente nos pertence, e não só colocarmos em cena aquilo que pensamos sobre.



[2]. Deve-se lembrar que este texto é de um pintor. Transportando-o para uma leitura com um viés cênico, não leio ilusão no sentido do teatro ilusionista/realista, mas sim num sentido amplo de ilusão como meio de inserir o espectador por outras conexões da própria visualidade.









-Composição Literária



Boi de Reis




A Pedra do Reino – Antunes Filho



Pensar a vida? Poetizar a vida? Imitar a vida?

Questiono-me quando usamos um texto literário em relação à maneira que lidamos com ele. A encenação cria uma visão sobre o texto ou “presentifica” o texto?

Por que não buscar a radicalidade do espetáculo cênico? Por exemplo: A festa “O boi de reis”, espetáculo cênico do folclore brasileiro que surgiu para celebrar a colheita do milho, tem que ser representado em um teatro fechado com um olhar repleno de pré-conceitos já encravados nas nossas mentes. Como ultrapassar esse estágio e fazer acontecer o espetáculo, chamado ou não de ritual, no momento exato, no presente? E a questão: Queremos apenas que o público conheça sobre ou vivencie o acontecimento?

Refletindo sobre tais questões, penso que a relação do artista com a composição literária tem que se dar de forma orgânica e presente. Com isso, será possível colocar o pensar na ação, e não somente verbalizá-lo. Para acontecer e fazer uma ação, independente de qual seja, há de se conquistar uma proximidade real com o material.
Pensando sobre a poética-musical, imagética e literária há de se conseguir uma composição geral do movimento, do cenário e da voz em sua obra de arte. Entendendo por movimento “o gesto e a dança, que são a prosa e a poesia do movimento. Por cenário tudo o que se vê, tanto as roupas, a iluminação, quanto os cenários propriamente ditos. Por voz as palavras ditas ou cantadas por oposição às palavras escritas; porque as palavras escritas para serem lidas e as palavras escritas para serem faladas são de ordem inteiramente distintas.”³

Discursando sobre as composições cênicas percebe-se a necessidade não só de uma dramaturgia propriamente da palavra, mas sim uma dramaturgia da imagem e uma dramaturgia do som.

E, já poetizando e ampliando a palavra dramaturgia, dou início às questões, tão freqüentes, do papel do dramaturgo dentro do processo colaborativo. Deve, este dramaturgo, participar criativamente de todas as composições? Deve propô-las? Deve recriá-las? Deve só estudar? Dramaturgo é apenas dramaturgista?




QUESTÃO DA DRAMATURGIA NO PROCESSO COLABORATIVO:

É uma questão e (ponto)

Dramaturgo de gabinete que escreve e traz o texto pronto, não se caracteriza um dramaturgo colaborativo. Um dramaturgo que espera todo o processo acontecer para ter a idéia genial e escrever o texto da sua vida, não caracteriza também um dramaturgo colaborativo.

O que faz então o dramaturgo em sala de ensaio além de comentar tudo que o diretor faz? Qual o seu papel criador? O de só olhar ou só criticar?

É uma questão e (ponto).



[3]. Craig citado por Marcos Bulhões M. Encenação em Jogo, p. 83, Editora Hucitec.
Mas com uma junção de pontos há sempre a reticências. Vamos às reticências...


“(...) Acreditamos num dramaturgo presente no corpo-a-corpo da sala de ensaio, discutindo não apenas o arcabouço estrutural ou a escolha das palavras, mas também a estruturação cênica daquele material. Nesse sentido, pensamos na dramaturgia como uma escrita da cena e não como uma escrita literária, aproximando-a da precariedade e da efemeridade da linguagem teatral, apesar do suporte do papel no qual ela se inscreve. (...) Ao invés de um escritor de gabinete, exilado da ação e do corpo do ator, queremos um dramaturgo da sala de ensaio, parceiro vivo e pensante dos intérpretes e do diretor.
(...) caberá a ele trazer propostas concretas- verbais, gestuais ou cênicas – mas também dialogar o material que é produzido diariamente em improvisações e exercícios. O texto, aqui, não é um elemento apriorístico, mas um objeto em contínuo fluxo de transformação. Daí a denominação dramaturgia em processo.
(...) Evidentemente tal dinâmica exige um novo tipo de dramaturgo dentro do fazer teatra
l."


ARAÚJO, Antônio – “O processo colaborativo no Teatro da Vertigem”. Revista Sala Preta. Edição 7.



A questão central não é arranjar este “novo tipo de dramaturgo”, mas colocá-lo dentro das regras do colaborativo e ter persistência e paciência para que entenda as regras.

No mais, vamos aprendendo a lidar, como estudantes de encenação, com os estudantes de dramaturgia. Tolerar, enfrentar e, com isso, não só “desenhar a árvores, mas sentir que estamos crescendo”. Não é poético nem conformista, apenas o fato: somos todos estudantes em processo.










Me diga, a rosa está nua
ou tem apenas esse vestido?


Por que as árvores escondem
o esplendor de suas raízes?


Quem escuta os remorsos
Do automóvel criminoso?


Há alguma coisa mais triste no mundo
Que um trem imóvel na chuva?



PABLO NERUDA – O livro das perguntas, São Paulo: Cosac Naify, 2008

domingo, 27 de setembro de 2009

Sobre a escuridão

Sentada em frente ao computador nesse momento me surgem várias questões sobre a última aula de direção na terça-feira passada, na qual foram debatidos diferentes tópicos sobre o chamado Processo Colaborativo, mas afinal que bicho é esse? Por que tantas dúvidas sobre as funções de cada artista envolvido no trabalho? Me questiono talvez, pois por não fazer parte desses processos não compreenda a dificuldade que está nas relações de trabalho entre as pessoas. Porém comparo com minhas experiências em teatro e vejo que todo o processo artístico é confuso, pois no nosso caso o do teatro, está trabalhando-se com materiais muito sensíveis: nós mesmos e os outros. E como não ser difícil e trabalhoso? Acho impossível, pois no processo das relações e da criação o terreno é sempre desconhecido e escuro, na qual tentamos caminhar em busca de alguma luz, e onde está essa luz? Está em mim, está nos meus colegas? Não sei, mas acho que em ninguém, pois acredito que a descoberta do fio de luz que surge na escuridão seja fruto de um trabalho conjunto sobre a realidade em que se encontram essas pessoas. Realidade essa que compreende um processo de criação, no qual cada indivíduo tem seu espaço e no qual a criação pode surgir sim do não saber, mas nunca da não escuta. A realidade, por mais desconhecida e escura que seja, nos apresenta pontos de apoio e precisamos estar atentos para percebê-los. Mesmo no escuro, quando tateamos o espaço conseguimos nos guiar para uma direção, assim é preciso tatear em conjunto esse espaço de escuridão chamado, processo. Acredito que na medida em que todos forem tateando essa realidade, buscando não imaginá-la e sim percebê-la, as funções ficaram mais claras, pois o trabalho de equipe em busca de um objetivo em comum (que pode ser a luz ou qualquer outra coisa), vai ter iniciado. O processo assim, pode ser encarado como o início de um tempo de experiência, que é um tempo diferente do convencional, porém tanto como o outro, é finito. A experiência em conjunto é menos assustadora que a experiência solitária, penso eu, assim é necessário que nesse processo existam rastros de experiências, que são ao meu ver, pistas que cada artista deixa para que o olhar do outro as siga. E na escuridão do processo seguir os rastros exige muita atenção de cada artista.Para finalizar cito Jorge Larrosa Bondía[1], que nos fala sobre a experiência e o saber experiência:
(...) não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver” nem “pré-dizer”.
[1] BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Leituras SME. Campinas/SP. 2001.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

PROTOCOLO QUINTO

referente ao encontro de
15 de Setembro de 2009


Procedimento, substantivo masculino derivado de outro: processo. Modo de atuar, comportamento. Transformado em verbo vira proceder, que tem seus sentidos ligados a conduzir, agir sobre, instaurar processo... [1] Como instaurar um processo?
Em aula conversamos sobre a idéia de procedimento, da dificuldade que é criar jogos, exercícios e estímulos precisos de improvisação para que os atores criem. E não só aos atores: como pedir uma idéia de luz? Como pedir ao dramaturgo uma cena? Pede-se ou espera que ele traga?
Viewpoints? Treinamento de respiração grotowskiano? Energéticos? Você é diretor ou professor de interpretação? Nós temos tempo pra ficar alongando o dedo mindinho? Quem você pensa que é? Porque os cadernos de direção do Brecht não estão traduzidos? Analizo os texto e divido em unidades de Ação? Stanislavski e Michael Tchekov servem para processo colaborativo?
Ressaltamos a importância de, quaisquer que sejam as escolhas da direção quanto aos tipos de aquecimento, que não se perca a atitude de jogo frente à cena e ao processo. Atitude de jogo, entendo, é propor que qualquer improvisação ou exercício seja encarado ao mesmo tempo como trabalho sério e como laboratório de vivência coletiva real e descontraída. Instaurar processo é também instaurar atmosfera: como um arquiteto que trabalha com o tempo, vai do diretor fazer de seu processo um gozo coletivo ou o muro das lamentações.
E esse aspecto tem a ver não apenas com uma questão personalista, mas com aquela proposta da cena, com aquele projeto. Cabe instaurar um processo com danças, músicas e vinho em sala de ensaio para estudar teatro Nô? Pode ser que sim ou que não, mas parece fundamental que o diretor tenha uma espécie de sensibilidade mínima para perceber que certas atmosferas geram um determinado tipo de atitude cênica, inclusive. Atitude de jogo traduz-se, sempre que ouço a expressão, como exercício de escuta, seguida de proposição que, na síntese, geram um silêncio para uma nova escuta e o ciclo se fecha. Dialético?
Gostaria de debater também sobre um aspecto surgido em protocolo que se refere à qualidade do trabalho dos atores. Preguiça? Eu tenho preguiça sempre que na balança entre a inércia e o desejo da ação, a inércia prevaleça. Nesse sentido, não acho que seja uma característica dos atores a preguiça, mas de todo aquele que não está tão a fim assim de estar ali, em jogo.
Por outro lado, não esperemos confortavelmente que os atores tragam os estímulos e as coisas livremente, por conta própria. Isso até ocorre, mas acho sim que é função do diretor não simplesmente pedir uma cena a partir de um estímulo como também o aguçamento da curiosidade, quase como um processo de sedução. Percebo hoje que, quanto mais dentro do processo os atores estão, mas o tomam para si, o que faz com que as proposições vindas deles aumentem (não só em quantidade, mas também em qualidade) cada vez mais e não acho um problema ser uma função do diretor alimentar esse desejo. É um problema quando, ao invés de figura de sedução, o diretor praticamente tem que mandar os atores trazerem uma cena, um estímulo (relação patrão-empregado) ou, pior, quando o diretor implora por isso (relação de favor).
Outro aspecto é quanto ao tipo de improvisação.
“Improvisem sobre a idéia de deus” ou “improvisem um monólogo, sem sair da cadeira, de o que vocês acham da figura do deus-cristão no imaginário da sua mãe hoje em dia, falando sem variações de velocidade e intensidade”. Do muito vago ao hiper-concreto, improvisações podem ser trampolins ou prisões eternas. Entender isso é simples, mas na prática, no calor do ensaio, pensar numa idéia de improviso não é tão simples.

Sem o medo de cagar regra, vou fazer aqui um à parte como exemplo:
Em primeiro lugar um elemento concreto e uma situação, como “corda” e “o início do conto do bosque dos elfos”, depois um elemento dificultador “as cinco atrizes têm que estar em cena”, uma proposta interpretativa “medo e desejo” e uma delimitação objetiva “quinze minutos”. Assim, formo: “Gostaria que vocês improvisassem sobre o momento em que Maria entra no bosque dos elfos, e os medos e desejos decorrentes disso usando a corda, sendo que todas as atrizes tem que estar em cena. Quinze minutos, pode ser?”
Mas daí, uma problematização:
Vamos sair do logocentrismo, friccionar textos, linguagens, sair da improvisação sobre idéias. Ok, ok. De novo, elemento concreto “tecidos espalhados pelo chão”, ao invés de situação, elemento abstrato “música Elephant Gun” e a mesma proposta interpretativa. Assim: “Enquanto essa música toca, eu gostaria que vocês usassem esses panos e vestidos espalhados pelo espaço para compor imagens físicas sobre os medos e desejos da Maria ao entrar no bosque. As imagens podem ser individuais ou em relação”. E durante o exercício outras instruções “não se viciem na mesma imagem”, “fujam da zona cinza [2]”, ”guardem as imagens e sensações para registrar depois”. Findas as improvisações, registramos tudo.
Sei lá, deu certo no último ensaio.

Outra questão sobre o modo de conduzir é a linha tênue que separa o propositivo do impositivo. E não são só as palavras “façam” ou “proponho que”, mas também o jeito com que se fala e o momento. Tem a ver com entendimento de grupo e, de novo, com escuta.

É um diretor e quatorze atores ou quinze diretores? Aí, parece, está a diferença entre processo colaborativo e criação coletiva. Relembro aqui a cena do filme Manderlay do diretor Lars Von Trier: a personagem Grace está a uma mesa com os cidadãos de Manderlay propondo a democracia como sistema de organização daquela pequena fazenda e ali, diante daquela aparentemente generosa e ingênua idéia, cria-se o espaço mais cruel para a manifestação das piores arrogâncias e surtos de autoridade. Com uma cena, Lars Von Trier dá um golpe no centro disso que chamamos “democracia” e relativiza a forma de relação dos homens entre os homens e, com isso, poderíamos repensar nossos processos. Será que o coletivo não é também o espaço mais propício para a manifestação das tiranias? Nesse sentido, qual a importância – no caso colaborativo – do entendimento, por todo o grupo, das funções?
Os nossos atores sabem quais são as funções de um ator no processo colaborativo? Os dramaturgos, iluminadores... sabem quais são suas funções? Nós sabemos quais são as nossas funções como diretores? Nós sabemos quais as funções dos outros? Nesse sentido não me parece que existam regras pré-estabelecidas, mas que, ao contrário, essas regras tem que ser encontradas no jogo do próprio trabalho.
Na teoria é fácil. É fácil dizer as idéias não são impostas, que serão testadas. É fácil dizer que não há hierarquia e que chegamos ao fim da taylorização dos processo de criação, mas assim como o corpo demora mais pra entender que a cabeça, o coletivo demora mais pra entender do que os indivíduos. E mais: o entendimento de cada indivíduo do grupo de alguma coisa não significa o entendimento do grupo daquela coisa.
E daí entramos numa vasta discussão sobre autoridade porque a conquista dos espaços no colaborativo é feita dia a dia e depende de uma colocação de si mesmo nas funções do grupo. Quantas vezes não nos sentimos omissos em nossos processos, com medo de impor nossas idéias e projetos e deixando que “a voz divina do grupo” fale mais alto?
Quantas vezes não sentimos que, por estarmos deixando o grupo falar, uma outra pessoa (dramaturgo, iluminador, ator) começa a se colocar como diretor e assume um espaço que aparentemente é nosso, mas que temos medo de reclamar em nome da democracia, temerosos de vestir a máscara da autoridade? E tantas vezes nossa imaturidade ou mesmo falta de proposta nos faz deixar o processo seguir por outros caminhos que não tem nada a ver com nossas idéias artísticas e nossa visão de mundo. Por outro lado, como também não vetar as manifestações individuais de cada membro do grupo? Antônio Araújo afirma que:

Essa autoria, que se dá, - ainda que não exclusivamente -, por mecanismos de apropriação, torna altamente problemática uma atitude de proibição ou veto à exibição da obra individual. Na verdade, uma explicação para isso se encontra no fato de se tratar de uma obra individual sim, porém impregnada de impressões digitais alheias. [3]

E mais para frente, na mesma tese, completa:

A vontade do encenador é apenas uma entre várias, e no acontecimento-cena que o grupo quer instaurar, o seu papel não parece ser o de criação à fórceps de uma “unidade de ordem”. Ao contrário, sua contribuição é a de garantir o espaço de emissão das distintas vozes [...] [4]

Isto posto, cabe perguntar: a equipe sabe da sua função no colaborativo e das funções que cabem ao diretor?
Podemos escolher, parece-me, dois caminhos: chamar a ensaio a bíblia de Antônio Araújo (sem nenhuma ironia, apenas com o humor necessário) e pedir pra que todos leiam e entendam o que é processo colaborativo ou descobrir o que é colaborativo para aquele grupo naquele momento.
A primeira opção me parece a própria traição da idéia de processo em si, porque a idéia de colaborativo surge justamente em resposta a modelos pré-fabricados de fazer teatral. Assim, transformá-la num modelo parece uma contradição à priori. A descoberta pouco a pouco das funções e do lugar de cada um no processo não tem nada a ver com um espaço pacífico e cordial, mas com um lugar de tensão e que exige não só experiência e entendimento profundo das funções, mas também maturidade.
Com isso, espero não estar invalidando a própria experiência, erros e acertos, como lugar de aprendizado e nem afirmando que só um diretor mais velho possa se dar ao colaborativo. Estou apenas tentando fazer um exercício de reflexão sobre o lugar do colaborativo para nós, diretores-aprendizes, hoje.

O segundo tópico do encontro a que se refere este protocolo foram as tendências do teatro contemporâneo e a importância de repensar a própria noção de procedimento a partir de modelos não logocêntricos – esforço, para mim, ainda absolutamente difícil tanto comigo mesmo, quanto com meu grupo.
As décadas de 70 e 80 foram responsáveis por aproximar do teatro o universo recém-surgido das artes performativas e, com muita força, a transposição de barreiras principalmente entre o cinema, a música, as plásticas e as cênicas, o que motivou na arte o surgimento do que chamamos de intertexto. Chamamos atenção para isto: a importância de, em processo, testar a profusão de elementos de outros universos artísticos na construção das cenas e incorporá-los à dramaturgia de forma a criar interfaces e camadas de leitura justapostas, cujo diálogo não está dado de maneira direta, mas é construído na relação tempo-espaço a partir do olhar do espectador.
Essas inserções que trazem a cena movimentos líricos ou épicos, rompendo a estrutura dramática, inserções essas que Lerhmann caracteriza como tendência (ou estética?) pós-dramática, contribuiriam para a reconstrução das imagens, permitindo libertarmo-nos da tradição literária e lançarmo-nos num processo menos logocêntrico e centrado na própria imagem, recurso que tem sido cada vez mais utilizado na arte contemporânea e que Octavio Paz define primorosamente:

Épica, dramática ou lírica, condensada em uma frase ou desenvolvida em mil páginas, toda imagem aproxima ou conjuga realidades opostas, indiferentes ou distanciadas entre si. Isto é, submete à unidade a pluralidade do real.[5]

Depois de assistir a vídeos como os Eistein on the Beach disponíveis do youtube [6], ou cenas de espetáculos da coreógrafa e dançarina Pina Bausch, esse desejo por ir a o encontro dessas tendências aumenta cada vez mais. Isso sem falar na recente experiência de Quartett, uma peça que prima – além da fantástica performance da protagonista e do desenho de luz impecável – por uma intertextualidade potente. É como se, para o texto de Muller, Wilson tivesse criado paisagens abstratas onde o movimento é um luxo e onde a música propõe a linha dramática que nos conduz de uma atmosfera a outra. Em Wilson, vejo concretizada a afirmação de Octavio Paz de que “a modernidade é uma espécie de autodestruição criadora” [7]. Sobre isso, levantou-se a possibilidade de fazermos um grupo de estudos.
Mas daí botamos os pés no chão.
Como, além de todas as nossas crises, fazer esses outros textos se inserirem no campo do ensaio e do processo? Seguiremos o modelo de Wilson e criaremos os quadros para que os atores se insiram neles como bonecos? Se o fizermos, continuaremos tendo um processo colaborativo?
Antônio Araujo em sua tese coloca Bob Wilson justamente como oposto do que chama de processo colaborativo. No entanto, em aula, Bulhões nos fez pensar sobre um outro tipo de colaboratividade não com os atores mas entre os outros criadores (músicos, diretor, coreógrafo...) Eu conheço pouco dos processos de Wilson, mas pelo pouco que li no livro de Galizia, acho que podemos pensar duas coisas: ou assumimos que a colaboratividade do processo pode se dar em níveis diferentes e daí teríamos que ter estabelecido esses níveis, em acordo, antes de começarmos para que não vendamos gato por lebre ao convidar as pessoas para integrar nossos coletivos ou, por outro lado, paramos de achar que para ser bom tem que ser colaborativo e assumimos que o processo de Wilson tem que ser centralizador para obter o tipo de resultado plástico que ele quer.
E, nessa segunda opção, abarcamos um lugar da discussão sobre o colaborativo que é a relação entre o processo e o resultado, último tema deste protocolo. Vocês estão cansados, eu sei.
Que cenas podem ser apresentadas? Quanto da nossa intimidade o público pode ver? Cenas depoimento tem que ser mostradas? Estamos preparados nesta semana para mostrar o que temos que mostrar?
À priori, o professor Marcos Bulhões defendeu que pedagogicamente sim, temos que mostrar as cenas que estamos produzindo porque, lembramos, o objeto da aula não é o resultado estético dos trabalhos e nem as observações acerca da grande obra do diretor, mas a instauração da problematização dos processos. De fato, as considerações feitas nas análises pelos professores de direção acerca das cenas nos fazem pensar sobre os rumos do trabalho e, pelo menos no meu caso, transformam o próprio processo, pois são provocadoras de discussões no grupo. Além disso, tirar-nos da estabilidade aparente é sempre uma maneira de movimentar o processo e impedir que falseemos nossas idéias com acomodações do tipo “pronto, escolhemos o conto a ser trabalhado, agora vai ficar tudo bem”.
No entanto, assim como da vida, certas intimidades quando são mostradas causam situações que prejudicam o trabalho. Não é a toa que a palavra obscena (literalmente, “fora da cena”) existe. E muitas coisas obscenas são produzidas em ensaio. Coisas essas que movimentam o grupo, cavucam medos e desejos, mas que não devem ser mostradas. É trabalho do diretor perceber quais viram cenas, quais servem apenas como estímulo e quais servem apenas como negativas.
Me alonguei demais, mas logo no final do encontro passado falamos também sobre uma característica do protocolo do Tchello que, diferente dos outros, era mais autoral: sobre isso concluiu-se que, como procedimento, é fundamental que os protocolos sejam generosos como registro, o que não significa que possamos neles problematizar questões e omitir opiniões, lançando sementes pra futuras discussões em sala ou em nossos processos.
Para concluir, o clipe da música “Elephant Gun” do grupo Beirut que tem me atormentado e que tenho usado no processo não só pela letra, mas pelo vídeo e a melodia me trazerem a idéia de festa, coisa que eu acho que o teatro às vezes se esquece de ser.

http://www.youtube.com/watch?v=N-mqhkuOF7s

Elephant Gun – Beirut

If I was young, I'd flee this townI'd bury my dreams undergroundAs did I, we drink to die, we drink tonight

Far from home, elephant gunLet's take them down one by oneWe'll lay it down, it's not been found, it's not around

Let the seasons begin - it rolls right onLet the seasons begin - take the big king down

And it rips through the silence of our camp at nightAnd it rips through the night
And it rips through the silence of our camp at nightAnd it rips through the silence, all that is left is allThat I hide



Pedro Braga, 21 de Setembro de 2009.







[1] Dicionário Priberam de Língua Portuguesa.
[2] Zona cinza: conceito usado por Anne Boggart em The Viewpoints Book para o momento em que o ator está perdido da improvisação, o momento em que não sabe o que fazer, não sabe porque está ali. É caracterizado como momento de transição entre momentos de improvisação.
[3] ARAÚJO, Antônio Carlos de. A encenação no coletivo: desterritorializações da função do diretor no processo colaborativo. 2008.
[4] Idem.
[5] PAZ, Octavio. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva – 1996. p.38
[6] http://www.youtube.com/watch?v=b26E0D2pm1c
[7] PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro. (referência a confirmar) p.16

Cena Dramática

(A atriz já está em cena, visivelmente irritada. O diretor entra)

DIRETOR – Vamos conversar?
ATRIZ – Vamos. Eu preciso ir rápido, mesmo.
DIRETOR – (como quem já sabe o assunto, mas quer que a atriz comece) Bom...
ATRIZ – Eu pensei bem e vi que é melhor mesmo eu sair do grupo.
DIRETOR – Porque?
ATRIZ – Ah, porque é muita bunda no chão, pouca prática, a gente não acha a porra do tema, a porra do recorte e fica só nisso. A gente já até se desviou da proposta original.
DIRETOR – Eu não concordo, mas de qualquer jeito, processo colaborativo tem dessas coisas. É complicado, demora achar o tema, o recorte. O tempo de pesquisa às vezes é enorme e esse tempo nós não temos...
ATRIZ – Então. Assim eu não quero.
DIRETOR – Você tem consciência de que esse é o segundo processo colaborativo que você abandona esse ano, ambos no mesmo momento: o de achar o recorte? Você vai uma hora ter que trabalhar isso. Você não pode ficar fugindo.
ATRIZ – Sim, mas vai ver que o problema é que os dois foram dirigidos por você.
DIRETOR – Pode ser, mas, me desculpa, eu acho que você está sendo covarde.
ATRIZ - Covarde?
DIRETOR – É, covarde. Eu te conheço e você tem um problema de carência enorme que fica tentando transferir pros processos. Daí você só gosta dos processos em que você é protagonista, que você recebe atenção máxima. Se tem uma pontinha de caos, de desordem, de não saber, você já sai.
ATRIZ - É, e daí?
DIRETOR – E daí que eu acho que se é assim não vai fazer teatro, vai ser funcionária pública.
ATRIZ - É um absurdo isso que você tá falando.
DIRETOR – Eu to falando isso porque eu gosto de você e gosto não só como atriz, como pessoa. Se eu te chamo de covarde é porque é isso que eu acho, você foge toda vez que tem um problema, se livra dele ao invés da gente achar um jeito de resolver junto. Se eu não gostasse de você eu diria: “tá bom, vai ver que é melhor mesmo você ir embora”.
ATRIZ – Isso vai ser melhor pra nós dois.
DIRETOR – Pra mim talvez, eu me livraria de um problema e ganharia minha nota. Pra vc eu tenho certeza que não, porque você não tá aprendendo nada com isso.
ATRIZ – Tá bom, quer saber, pronto, não vou mais sair dessa porra, vou ficar até o final e vocês vão ter que me engolir e eu vou causar nessa droga. E agora eu tenho que ir embora.

(Atriz pega as malas e, sem deixar o diretor responder, vai embora. Cai o pano)

**baseada em fatos reais.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Protocolo – 8 de Setembro de 2009
d-.-b – Sonata for a good man

1. Recorte Poético


[...]A perspectiva do compartilhamento não acontece apenas entre outros colaboradores e o dramaturgo, mas é de todos com todos, simultaneamente: o ator traz elementos para o cenógrafo que, por sua vez, propõe sugestões para o iluminador, e este para o diretor, numa contaminação freqüente. Portanto, cumpre falar de uma encenação em processo, de uma cenografia em processo, de uma sonoplastia em processo e assim por diante, com todos esses desenvolvimentos juntos compondo o que chamamos de processo colaborativo.

“Qual é o seu recorte poético?”
Recorte poético- ou o que eu entendi dele – é toda a sua “bagagem” por trás do trabalho. O que você anda escutando, assistindo, lendo, observando, que anda contribuindo para a criação do seu processo. Quais são suas influências artísticas? Quem são seus mestres? De que fontes você anda bebendo? E o que você anda oferecendo à sua equipe?
Creio que, antes de continuar, cabe dizer que isso não se refere necessariamente ao material bibliográfico, às referências teóricas ou coisas do tipo. Tem mais relação com o que te influencia, o que te agrada, o que você “antropofagiza” artisticamente.
Ainda dentro dessa mesma discussão, nos deparamos novamente com o que Bulhões chama de “acupuntura poética” – estímulos pontuais para criações do grupo. Na verdade, essa é uma expressão que me causou grande interesse desde a primeira vez que ouvi, pois a idéia de “mote”, de “tema” para a improvisação dos atores – que, muitas vezes, parece ser uma responsabilidade somente do diretor – é relativizada. Um trabalho de criação não precisa, necessariamente, surgir a partir de uma idéia fechada, formalizada. Também não precisa surgir do “desenho livre”, da improvisação sem regras. O termo “acupuntura poética” me serve muito, pois se aproxima muito da idéia de “margens” que trabalho com meu grupo. Aos poucos, os estímulos vão aumentando, e as margens estreitando. Em outras palavras, as imagens, frases, desenhos, conversas soltas, todos esses tipos de estímulos para a criação começam agora a tomar uma forma mais definida, uma idéia mais fechada. Da mesma forma, as opções formais também começam a surgir, em consonância com as idéias conceituais.
(Parênteses muito pessoais: essa palavra, “consonância”, me incomoda... não queria usá-la aí não, mas não achei palavra mais adequada. Leia-se, por “consonância”, em pé de igualdade, ao mesmo tempo, com o mesmo valor, sem que uma coisa venha antes da outra... ok? Então bola pra frente.)
Esticando só mais um pouquinho esse assunto, discutimos muito sobre o que é e como funciona essa “acupuntura poética”, e a relação da mesma com o tal do “recorte poético”. Oferecer à equipe a sua bagagem pessoal não é só uma forma de generosidade, ou uma maneira de tentar fazer com que eles enxerguem um pouco do que você está procurando. Além de tudo isso, é uma maneira prática e eficiente e fazê-los criar dentro das margens que você deseja trabalhar. Por isso, é importante que a equipe compartilhe suas influências, e é imprescindível que nós – os tais “diretores” – façamos uma certa pressãozinha para (leia-se EXIJAMOS) que eles busquem e conheçam um pouco de nossos universos poéticos.
Como estímulo para todos nós, sugiro agora que façamos uma pequena lista das referências artísticas que nos movem atualmente. Quero muito saber o que anda mexendo com vocês!

2. Workshops

[...]Por exemplo, como nesse tipo de processo todos são autores e, portanto, propositores de material teatral, há a produção de uma enorme quantidade de cenas. Via de regra, tais cenas passam a ser muito preciosas para quem as produziu. Especialmente se pensarmos que esse material vem de experiências pessoais ou da história de vida de cada ator. Por isso, o valor sentimental agregado a cada proposição se intensifica, e é raro nos depararmos com uma postura de desprendimento quando se discute ou se seleciona cenas do conjunto produzido. Daí a necessidade de uma negociação firme, muitas vezes conflituosa e exaustiva, especialmente por parte do dramaturgo. Por se tratar de prática bastante delicada, envolta numa série de componentes afetivos e emocionais, não é incomum essa seleção ser menos criteriosa ou sintética do que deveria. Às vezes, a fim de evitar dissabores – presentes e futuros – ou, mesmo, com o intuito deliberado de agradar a um ou outro componente do grupo, acaba-se incorrendo em excessos, elegendo-se mais material cênico do que necessário. E é a própria obra final que sofre com isso, obrigada a incorporar elementos pouco orgânicos ou alheios a ela, por critérios extra-artísticos.

O que estou aqui chamando de workshop é uma proposta dada por Bulhões como procedimento de criação. A partir de estímulos dados (as tais “acupunturas poéticas), os atores criam, individualmente, cenas que devem ser apresentadas durante um certo momento do cronograma de ensaios. Bulhões, citando sua experiência com o Teatro da Vertigem, sugeriu que os tais estímulos surgissem de pesquisas individuais dos atores in loco, ou seja, que os atores buscassem locais, pessoas, situações (que seriam sugeridas por eles ou pelo próprio diretor) que os estimulassem a criar algum tipo de manifestação cênica, de tempo controlado, para acrescentar ao repertório de material do processo. Miriam Rinaldi , também a partir da experiência vivida no mesmo grupo, além das experiências que relata sobra o processo de criação de Pina Bausch, conta que os workshops também podem surgir de estímulos ‘poéticos’ sugeridos pelo diretor ou pelo dramaturgo – no caso, perguntas elaboradas pelos mesmos, que se relacionam com a temática ou com o interesse formal da pesquisa cênica. Em ambos os casos – e em tantos mais que podem surgir do mesmo ponto – o que se busca é uma espécie de relato pessoal poético (e lá vem de novo essa palavra!) dos participantes do processo .
Porém, a questão que “pega”, no caso, é: até que ponto o envolvimento do diretor é válida, necessária ou relevante nesses momentos tão pessoais de criação? Até que ponto o diretor deve intervir nesses workshops? Ele deve dar somente o pontapé inicial – o que, no caso, pode ser simplesmente a definição do tema – ou sua participação se dá justamente na definição dessas “agulhadas poéticas”? Ou mais: cabe a um diretor de um processo colaborativo ‘controlar’ ou ‘manipular’ os temas sugeridos para os workshops, para que se chegue com mais facilidade a um resultado almejado?
Nesse longo processo, era natural que a produção diária e contínua de workshops resultasse em material bastante heterogêneo, com cenas triviais misturadas a outras com traço pessoal bastante forte. Não havia como garantir a qualidade dos workshops. Algumas perguntas ecoavam na hora, outras não tinham resposta, a não ser minutos antes da apresentação. Possivelmente essa alternância se deva tanto à qualidade das perguntas quanto à suscetibilidade do elenco. E é uma oscilação que parece não dizer respeito apenas ao trabalho do Vertigem. Pina Bausch, por exemplo, reconhece uma flutuação semelhante em seu processo e afirma que boas perguntas nem sempre dão bons resultados, o que a leva, por vezes, a reformular uma mesma questão, apresentando-a de maneira totalmente diferente (Schmidt, 1983, p. 235). O mesmo aconteceu no processo de Apocalipse 1,11, pois nem sempre os atores apresentaram as respostas almejadas.


Quando chegamos a esse ponto da discussão, Bulhões nos disse algo mais ou menos assim: “Se a coisa ficar muito aberta, será que os atores vão fazer?”. Depois disso, completou com mais ou menos essa frase: “ator é bicho preguiçoso”, arrancando risos daquele pequeno grupo de aspirantes a diretor, que sabe exatamente o que ele quis dizer com essa frase, pois todos nós temos ali, com absoluta certeza, muito mais experiência atuando do que dirigindo.
Bulhões tem razão. Ator é preguiçoso mesmo. A formação “normal” de atores os coloca no papel de simples executores dos devaneios conceituais e/ou imagéticos do diretor e/ou do dramaturgo. E talvez seja esse um dos grandes impasses de um processo colaborativo: transformar a cabeça do ator, transformá-lo num agente da criação.
Colocando aqui um breve relato pessoal sobre o tema: é engraçado ver as reações da equipe – principalmente dos atores – ao passarmos instruções de trabalho que devem ser feitas fora do horário de ensaio. Caretas, reclamações, frases do tipo ‘já não basta ter que fazer o fichamento da Beth Azevedo, agora tenho que levar o ensaio pra casa!’... enfim, coisas que eu, como ator, provavelmente faria do mesmo jeito – talvez até um pouco mais grosseiro. Percebi isso ao passar duas instruções a eles: primeiro, que eles deveriam fazer protocolos dos ensaios. Depois, que eles deveriam montar os tais workshops. Porém – como se fosse uma surpresa – quando eles perceberam que estavam, enfim, colocando seus posicionamentos individuais, suas vontades como artistas, suas angústias e suas investigações sobre o tema em cena, os workshops acabaram se tornando a parte mais esperada dos ensaios. Mas ainda assim, ainda existe aquela velha mania de esperar sempre que a iniciativa para a criação venha do próprio diretor. Creio que tenha sido por isso que levantei essa questão em sala de aula. Não sei o quanto estou preparado para – ou o quanto quero – estimular esses momentos de criação.
Acho que, na verdade, essa é uma discussão sem ponto final. Cada diretor tem interesses particulares em relação à utilização dos workshops, e adota o procedimento que mais lhe interessa. Porém, justamente por isso, é bom deixar claro: os workshops NÃO são momentos de livre improvisação dos atores; são momentos de criação individual para aproveitamento coletivo. Logo, deve-se pensar os workshops como uma idéia de encenação. Os participantes devem trazer material cênico concreto – uma cena individual ou coletiva, uma ação performativa, uma seqüência de imagens. Não é apenas pensar numa boa idéia e tentar concretizá-la na hora do ensaio. Além de levantamento de material, também é um exercício de criação e execução cênica.

3. Imagem poética

O que você quer causar no espectador?
Discutimos, durante algum tempo em momentos distintos da aula, sobre essa questão. Antes mesmo de qualquer recorte temático, devemos pensar no que queremos provocar, onde queremos cutucar o espectador. A partir dessa conversa, surgiu o termo ‘imagem poética’, depois de um exemplo dado pelo Bulhões. Mais ou menos isso: quando pensamos em alguma montagem de “Esperando Godot”, qual é a primeira coisa de que nos lembramos? Certamente, será a imagem dos dois sentados debaixo da árvore. A imagem é potente, e gruda na memória do espectador, atormentando-o quando surge na cabeça. Segundo Bulhões, as imagens potentes criadas em um espetáculo são o que irá se fixar na memória do espectador. As tais ‘imagens poéticas’ são, nesse sentido, as responsáveis pelas sensações que se pretende causar na platéia. Mais do que o enredo, a encenação, as falas, é a potência imagética que o espectador irá carregar por toda a vida.
Creio que essa idéia fique mais clara nas artes plásticas. Então, aí vai para vocês, uma imagem do artista plástico e ilustrador Dave McKean. Dêem uma olhadinha e digam o que essa imagem causa em vocês:



Sandman, por Dave Mckean

Não me estenderei muito mais nessa questão, visto que é justamente a pergunta que deve ser lembrada por nós, diretores: de que maneira nós queremos atormentar o espectador?

4. Mais e mais

Muitas questões surgiram durante essa aula que, mesmo tendo apenas quatro de nós na sala, teve mais de quatro horas de duração e teve algumas das mais frutíferas discussões até agora – pelo menos na minha humilde opinião. Porém, pelo fato de ter me estendido muito mais do que deveria para um protocolo, aliado ao fato de ser péssimo para escrever e para me lembrar direitinho das coisas, peço desculpas aos meus colegas, mas não consigo mais discorrer sobre muitos assuntos de extrema relevância para esse coletivo de diretores. Então, como proposta (ligeiramente picareta, devo admitir), peço a ajuda de meus colegas de sala que estavam presentes na semana passada para terminar esse “protocolo in progress”. Colocarei aqui tópicos que julgo importantes, para decidirmos o que colocar nesse protocolo, juntos.

• A discussão que ocorreu na segunda-feira, dia 7 de setembro, sobre o tal do ‘argumento’;
• Como lidar com as relações do coletivo sem querer transformar isso numa relação familiar?
• Fazer os atores experimentarem a criação de uma síntese
• Sugestões para experimentações de improvisação:
 Realista complementar
 Realista estranhada
 Realista fantástica
 Simbólica
 Cenas simultâneas – complementares e heterogêneas
 Cena ambiental – Espaços específicos ou instalações
• Esqueci alguma coisa?

Desculpem a picaretagem, e obrigado pela ajuda.
Cansaço e sono.

Tchello Gasparini
De 9 a 15 de Setembro (sim, eu demoro pra escrever)

terça-feira, 8 de setembro de 2009

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
DEPARTAMENTO DE ARTES CÊNICAS
DIREÇÃO III
Prof. Dr. Marcos Bulhões

Relato a partir da aula de 31 de agosto de 2009

“Tenho a impressão que para muitos artistas, para muitos intelectuais, a questão central é você estar frente ao perigo. E esse perigo é o perigo de perder a fala. Não ter a possibilidade de intervenção ou de ser ouvido numa sociedade como essa. Todos sentem como uma coisa muito forte esse perigo de ficar simplesmente mudo e você perder a sua fala e a sua capacidade de intervir. E, por isso, a coisa mais importante no teatro é que você faça uma coisa em grupo. Eu me lembro de uma frase da diretora da Noruega em um encontro em Amsterdã. Nós falávamos sobre utopia e ela me disse:” a nossa utopia é que façamos alguma coisa j untos, uma coisa coletiva.”. Nesse sentido, eu percebo que muitos grupos que fazem teatro não fazem apenas teatro. Eles estão, parece, muito mais interessados em criar uma rede, uma espécie de network em que, talvez, eles fizessem um workshop. Em outro momento eles fariam um seminário, e conseguiriam juntar o dinheiro para montar uma peça em um grande teatro por algum tempo.”

Começamos nosso encontro com uma questão jogada na roda pelo Bulhões: Por que não nos colocamos nas discussões da segunda-feira da mesma forma que na terça feira de manhã? Tentamos analisar o que nos inibe a participar das discussões a cerca das cenas apresentadas por nossos colegas de direção, omitindo nossa contribuição ao processo artístico do outro, chegamos a provisória conclusão que a tentativa de interdisciplinaridade, entre as matérias de direção e dramaturgia, não está sendo feita de uma maneira que nos contemple totalmente. Lembro-me bem que fui uma das primeiras a apontar a presença do Sérgio de Carvalho, professor de dramaturgia, como um possível fator de tensão nos encontros de segunda-feira, mas penso que o espaço de discussão também deve ampliado pelos próprios alunos. De alguma maneira as demandas da aula de dramaturgia não estão ajudando nos processos colaborativos, parece que há uma discrepância entre os interesses dos encenadores e dos dramaturgos, não podemos negar que a função da dramaturgia tem sido colocada constantemente em discussão na cena contemporânea.
Procuramos soluções para o problema da segunda-feira: Foi sugerido que após uma breve discussão coletiva das cenas, os dramaturgos se juntassem com o Sérgio e nós nos juntássemos com os professores de direção a fim de ter um diálogo mais específico sobre dramaturgia e encenação, mas esse diálogo terá de acontecer em alguma instância, uma vez que trabalhamos juntos e vamos produzir uma mesma obra. Esse cruzamento de conhecimentos e visões entre encenador e dramaturgo, assim como entre atores e o diretor, não precisa ter a finalidade de gerar uma unidade, talvez diversidade possa ganhar um plano na encenação.

Mas voltemos a supermarionete de Craig. Sua idéia de substituir um ator vivo por um manequim, por uma criação artificial e mecânica, em nome da perfeita conservação da homogeneidade e da coerência da obra de arte, já está ultrapassada. As experiências posteriores, que destruíram a homogeneidade da estrutura de uma obra de arte introduziram nela elementos ESTRANGEIROS, por meio de colagens e assemblages; aceitação da realidade “toute prête”; o pleno reconhecimento do papel do acaso; a localização da obra de arte na fronteira estreita entre REALIDADE DA VIDA e FICÇÃO ARTÍSTICA – tudo isso tornou prescindíveis os escrúpulos do início do século, do período do Simbolismo e da Art Noveau.”


Surgiu a questão da presença dos atores no encontro de segunda-feira, seria ela necessária? Talvez fosse mais produtivo passar os retornos dados em aula para os atores no espaço de ensaio.
Depois da apresentação das senas do dia 01/09, foi proposto aos grupos que, nas próximas aberturas de processo, nós elaborássemos um argumento escrito, isso causou uma certa confusão na cabeça do pessoal, uma vez que muitos de nós não tencionamos uma narrativa exata e alguns adotaram pontos de partida mais formais para trabalhar. Houve então a tentativa de ajustar o conceito de argumento para o plano da encenação. Quanto a questão do argumento, devo dizer que essa protocolista aqui teve bastante sorte, tive um ano de uma matéria denominada “Argumento” na faculdade de cinema, lembro-me bem da primeira fala do meu professor de Argumento no primeiro dia de aula: “Quando vocês forem à locadora e virarem o DVD pra ler a descrição atrás, estarão diante de um argumento, agora vamos que realmente interessa”. Essa matéria era bem polêmica, por a bibliografia era extensa, tivemos que ler durante o ano a Bíblia, Tristão e Isolda e a Ilíada. Nosso trabalho então era aproximar e classificar as narrativas até que chegamos a não mais que trinta narrativas que estavam na base de tudo que é narrado até hoje. Isso mesmo, as principais culturas que compuseram a mentalidade do ocidente não conseguiram produzir mais que trinta narrativas. Desde que fiz essa matéria fiquei com a idéia de que a liberdade artística residia na forma, mais do que na fábula.
Deparamos-nos com um ponto fundamental do diálogo entre diretores e dramaturgos na hora de compor um argumento: A proposta de encenação deve vir antes de proposta literária? Um pensamento mais conservador coloca o texto em primeiro lugar, considerando como ruído tudo aquilo que não está relacionado as questões levantadas pelo texto. Os elementos estrangeiros da cena ainda podem ser considerados pelos que se propõe a fazer teatro contemporâneo como ruído, mas que mal há nisso? O ruído pode ser um elemento de distanciamento, ou heterogeneidade, ou até uma inquietação pessoal de algum dos autores da obra, pode ser tantas coisas em potência que seríamos cegos de não aproveitar as possibilidades geradas pelo elemento aparentemente externo a cena.
O Bulhões nos relatou um dos processos que coordenou, 1999, disse que começou os ensaios sem ter definido um tema, pois seu objetivo principal era trabalhar sobre espaços fora e dentro do edifício teatral. Esse é um bom exemplo de um ponto de partida mais formal, mas sabemos que a simples opção por explorar espaços fora do teatro é por si só uma opção política, pois o discurso pode ser elaborado sobre bases formais. O processo colaborativo que estamos experimentando nesse semestre nasceu de experiências políticas dentro do teatro, na tentativa de horizontalizar as relações de trabalho nos grupo, é claro que no processo colaborativo as funções ainda se mantém e cabe ao diretor um papel de “Liderança” (meu pai é escritor de livros de auto-ajuda, por isso eu odeio muito essa palavra).
“Por tanto, a questão do teatro ser político para mim não é simplesmente tratar de temas e tratar de um conteúdo político mas é ter essa forma política. Você pode ter teatros que não são nada políticos e tratem de temas políticos. É a forma que vais definir”

No final do encontro discutimos um pouco o problema do camarada Tchello: Ele sentiu que a presença de um dos atores no grupo prejudicava o trabalho, por causa da hostilidade dos outros membros do grupo em relação ao referido ator, o Lucas, e também por questões de linguagem: O Lucas vem de grupos que possuem uma linguagem “anos 70” de cunho bastante político, seu histórico torna-o inadequado ao trabalho que o diretor estava propondo e a única maneira que o Tchello achou justa para manter o Lucas no grupo era calando a sua voz, por isso preferiu afasta-lo do grupo. O Bulhões ponderou a questão afirmando que o Lucas era uma presença marcante em cena e sugeriu que o Tchello reconsiderasse a sua decisão, disse ainda que é importante para o diretor saber voltar atrás e pedir desculpa. Deve ser muito engraçado para o Tchello me ver descrevendo a situação tão a grosso modo assim, por isso termino esse relato passando a palavra a ele: Então, velhinho, como você resolveu isso?

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Primeiras Impressões

Como ouvinte da aula e dos processos de direção3, as questões que ficaram mais evidentes para mim, no primeiro e último encontro o qual participei, foi o ponto de discussão a cerca das opções de investigação e de linguagem de cada diretor. Durante a discussão Bulhões, inúmeras vezes questionou os alunos sobre o que eles pretendiam investigar na direção 3, para a partir desse ponto construírem junto com os dramaturgos um argumento para as propostas de encenação. Pensando sobre o que os diretores pretendiam me questionei sobre o que eu queria com o teatro, o que me moveria a investigar e sobre isso encontrei na fala de Grotowski uma possibilidade:


Não me interessa o teatro da palavra porque é baseado em uma falsa visão da existência humana. Não me interessa também o teatro físico. Porque o que quer dizer? Acrobacias em cena? Gritos? Rolar no chão? Prepotência? Nem o teatro da palavra e nem o teatro físico – nem o teatro, mas a existência viva no seu revelar-se.*


Ao refletir sobre a fala de Grotowski, me vieram várias perguntas sobre o que vale a pena investigar, o que realmente vale a pena a ponto de nos movermos em direção a isso. O teatro possui inúmeros gêneros que de certa forma foram repostas a algumas questões que moveram os homens, mas talvez o mais precioso fosse buscar as perguntas, ou melhor, traduzir em cena as nossas experiências e com isso as nossas dúvidas. Penso que o teatro tem uma função que nos diz respeito, pois fazemos teatro, mas e para os outros que é teatro? Tanto para os nossos colegas de cena, quanto para o público, o que o é teatro? O que os moveria a trabalhar conosco ou a irem nos assistir, a saírem de suas casas para isso? Por esses motivos andei pensando que em primeiro lugar devemos estar abertos a receber o outro estar disposto que o outro colabore e amplie, através de seus questionamentos, as nossas investigações artísticas, pois nós só existimos a partir do momento que somos percebidos pelo outro, por isso a gente precisa do outro. Sendo assim uma investigação solitária não nos serve, pois ela será estéril, ela só vai se completar no outro. Para que isso aconteça precisamos, como diz Grotwski, investigar a existência viva no se revelar-se, pois o vivo está na troca com o outro, desde o início da investigação, me refiro aqui também ao outro colega de trabalho, que mais tarde vai ser de certa forma o público. Acho que a construção do argumento pode ser o início da troca, o início da existência viva, humana. Claro que isso soa um tanto poético, mas acredito que são as pequenas coisas que vão revelar mais tarde a grande descoberta. Para finalizar cito mais uma vez Grotowski:

Penso que, dentro de certos limites, estamos condenados a inquietação. Existem, no entanto, limites definidos de inquietação que podemos suportar. Se procuramos o modo de nos esconder atrás de fórmulas intelectuais, atrás de idéias, de slogans, ou seja, se mentimos a cada instante com maior refinamento, estamos condenados à infelicidade. Se tudo aquilo que queremos fazer é sempre apenas morno, sempre até um certo ponto, sempre “como os outros”, sempre com o fim de sermos aceitos, estamos condenados à infelicidade. Mas se – paradoxalmente – tendemos a uma direção diferente, a um certo nível se manifesta a calma.**

*GROTOWSKI,Jerzy. Resposta a Stanislavski. Nova York em 22 de fevereiro de 1969.
**Idem.



Kalisy Cabeda

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

PROTOCOLO 2

Começamos a aula lendo o protocolo da Dani acerca da primeira aula da terça feira matutina, protocolo que relatou com preciosidade a primeira aula desse segmento do curso de Direção III na Universidade de São Paulo. Uma discussão sobre a importância da documentação foi iniciada depois da leitura do protocolo, a documentação que está ligada a questão do registro, que por sua vez está ligado ao processo histórico. Logo, algo que parece simples, mas que está relacionado com o processo de construção de uma memória coletiva, um registro do mundo.

E como foi levantado em aula, o registro (ou pelo menos um tipo dele) é a documentação da escuta, as pessoas hoje em dia são muito expressivas e pouco auditivas. Na verdade recebem com pouco caso aquilo que lhe são dadas.

“O que eu faço- assisto (...) Talvez seja isso. A única coisa que eu fiz todo o tempo foi assistir pessoas. Eu tenho apenas visto relações humanas, ou tentando vê-las e falar sobre elas. É nisso que eu estou interessada. Não conheço nada mais importante.”[1]

PINA BAUSCH

A capacidade de escuta está ligada a não somente à capacidade de visão, mas com qualquer tipo de recepção, como você lida com a matéria que você recebe, poética concreta ou abstrata. Escutar é um ato de generosidade assim como registrar, como você recebe as informações, como você lê? Já interpretando ou lendo para depois interpretar, esse processo está intimamente ligado a experiência adquirida durante o processo, seja ele teatral ou não.

Sobre a postura dos diretores nas discussões das cenas, Bulhões nos questionou sobre como estamos lidando com o processo, principalmente nas discussões em sala de aula, a atitude de jogo que esse processo nos pede. Como eu falo sobre o próprio processo diante minha equipe e meus professores. E o posicionamento em sala de aula está ligado as discussões de ensaio, encontramos desde pessoas que falam muito e se posicionam de diversas formas até aqueles que nunca falam durante as discussões. Procedimentos como dar 5 minutos para cada um da equipe falar ou “a partilha” foram mencionados como meio de dar voz a todos, mesmo que esse obrigue o mais tímido a se posicionar e o mais “expressivo” a falar menos.

Aos poucos o ambiente em que uma pessoa pode se posicionar vai sendo construído, principalmente em processos que a equipe não se conhece de outros trabalhos. Tchello falou de sua dúvida em como proceder com as discussões, porque ao mesmo tempo em seus atores podendo falar livremente e opcionalmente, contribuem muito nos ensaios ele tem receio de um procedimento “voz a todos” no qual esse dialogo direto entre os participantes pode limar uma possível discussão verticalizada. Mas eu creio que esses procedimentos de democratização da fala cobram de maneira inteligente um posicionamento do ator tímido.

A verdade é que o homem é sempre o homem de um clã, de uma comunidade. As categorias família, amizade, vizinhança, antes de serem tipos da comunidade para Tönnies, são, para Hume, determinações naturais da simpatia. Justamente, porque a essência da paixão, porque a essência do interesse particular não é o egoísmo, mas a parcialidade, é que a simpatia, por sua vez, não ultrapassa o interesse particular e nem a paixão. “Nosso sentido do dever segue sempre o curso habitual e natural de nossas paixões”. Vamos até o fim, com o risco de, aparentemente, perder o benefício de nossa distinção do egoísmo e da simpatia: esta não deixa de opor-se à sociedade tanto quanto aquele.”[2]

GILLES DELEUZE em “Empirismo e Subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume”.

Outro ponto levantado nas discussões foi sobre a capacidade de aglutinação de pessoas que o diretor tem, e como provocar o tesão – paixão - no grupo? Talvez pela simpatia e pelo carisma como disse o Bulhões em sala de aula, uma figura carismática que consegue unir sua equipe, parece magia quando na verdade é postura e disponibilidade. E quando eu falo simpático ou carismático não estou falando de pessoas sorridentes que atraem as outras como imãs, mas da mínima atração entre essas pessoas que faz desse encontro uma explosão criativa, obviamente que essa frase soa mais bonita que a realidade em si e eu to já estou c****** regra no protocolo...

“É muito importante, é fantástico para as pessoas usarem a festa do movimento (na vida diária). É necessário usar todas as energias da vida. As vezes nós recebemos muita pressão e para onde ela vai? Ou nós fazemos algo de positivo, ou nem tanto, com esta energia, ou nós simplesmente não sabemos o que fazer com ela. Mas isto é algo que deve acontecer em grupo, porque as pessoas encontram-se, comunicam-se.”

PINA BAUSCH

Pego a citação de Pina pra relacionar com o jogo, que o processo colaborativo pode ser conduzido como um jogo, e apesar das muitas formas que esse jogo possa tomar, o objetivo é parecido; encontrar algo em comum do que eu quero falar com essas pessoas, o que envolve muita negociação, convencimento e desapego mas como não estamos em uma mesa-redonda e a discussão não deve ser teórica (apenas) e que tudo isso se transforme em material cênico, pra daí a gente discutir o que estamos fazendo. Enfim, tentemos encontrar o foco onde usar nossa energia e nos movimentar de fato, e com o grupo encontrar anseios, vontades e um possível recorte, ai!

Por fim, discutimos sobre as improvisações e a pratica cênica nesse início de processo, primeiro, como conduzir um aquecimento que leve para essas improvisações sem perder tempo com o desnecessário, encontrar o foco do ensaio e pensar sua condução. O aquecimento pode ser lúdico e já antever um estado de cena procurado, uma ambientalização do espaço até, e não ser apenas um alongamento e uma corrida pelo espaço aleatória.

Bulhões problematizou a questão da linguagem da improvisação, como se propõe algo que permite uma construção que vai além da mimesis, do cinema ao vivo. Como estimular criação a partir de outras linguagens, de outras formas não tão recorrentes como a imitação da realidade? Como envolver o ator criador em proposição de cenas para além do corpo dele? Fazê-los experimentar a direção e a dramaturgia, colaborar com textos, empenhar para além do atuar, sentir o processo colaborativo. Desde proposições de workshops nos quais os atores trazem cenas que eles produziram ou estimular a criação de roteiros cênicos planejados para o ensaio. E como provocar o tesão em toda equipe, como envolver o sonoplasta e o iluminador na proposição cênica?

PROPOSIÇÕES ARQUIVADAS

Discussão no ensaio.

  • Dar cinco minutos pra cada participante falar sobre o ensaio, incitando os tímidos a falarem e tirando um pouco o tempo dos “expressivos”.
  • A partilha; pegar um pequeno cetro (ou qualquer outro objeto) e instituir que só pega aquele objeto quem tem algo que é muito, mas muito importante a ser dito no ensaio, algo que seja essencial para que todos ali naquela roda escutem. Quem concordar com o que foi dito grita “Ho”.

Procedimento de Protocolo

  • Decidir se é semanal ou diário, decidir as regras do grupo sobre como vai ser conduzido o registro.

Exercício Cênicos

  • Explorar formas; pedir improvisações da mesma cena só que com motes diferentes; realista, realista fantástico, abstrato, performance...
  • Explorar exercícios de improvisação desenvolvidos por outros encenadores como Augusto Boal e Anne Bogart (Viewpoints).

“Acho que cada pessoa tem de descobrir isso por si só. Não se pode dar conselhos. Cada um tem sua maneira de coreografar. Claro que é muito bonito ter uma riqueza variada de possibilidades, alguma coisa ligando as diferentes artes. Mas não sei dizer se é ou não a melhor forma, podem ser muitas coisas juntas em harmonia. Formar escolas é perigoso, porque breca a fantasia. Me parece importante que as pessoas mudem os momentos de suas vidas. O sentimento sobre o que está acontecendo no mundo é sempre um novo momento” PINA BAUSCH.

Também não acredito em regras, mas acredito na troca de conhecimento.

“Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera”. CECILIA MEIRELES, Primavera.



Spring affair – donna summer

Ooh, something's coming over me

ooh, I think it's got a hold on me, it's got me, it's got me

Ooh, just the man I hoped you'd be

Ooh, just the man to set me free, you got me, you got me

you got me, you got me

Spring affair, spring affair, spring affair

and I'm hung on you

Spring affair, spring affair, spring affair

and we've got something new, me and you, oh baby

Ooh, guess I'm falling much too fast

Ooh, I hope this love is gonna last, I've fallen

Ooh, the feeling's getting really strong

Ooh, gives me strength to carry on, I've fallen, I've fallen

Spring affair, spring affair, spring affair

and I'm hung up on you

Spring affair, spring affair, spring affair

and we've got something new

It's a spring affair

it's a spring affair

oooh, ooh, ooh

Spring affair, spring affair, spring affair

and I'm hung up on you

spring affair, spring affair, spring affair

and we've got something new

uuuh uhh aah,.. oh yeah...

uuuh uhh aah,.. oh yeah...

Ooh, you're the sunshine in my life

Ooh, how you come on shining bright, you got me

Ooh, feeling's gonna grow and grow

Ooh, let your loving river flow, you got me, you got all of me

Spring affair, spring affair, spring affair

and I'm hung up on you

spring affair, spring affair, spring affair

and we've got something new

spring affair, spring affair, spring affair

and we've got something new

It's a spring affair

It's a spring affair

Spring affair

give strength to carry on

spring affair...

Protocolo dia 25 de Agosto de 2009.

Júlio Barga



[1] FERNANDES, CIANE. Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro: Repetição e transformação. Annablume Editora, 2007. São Paulo.

[2] DELEUZE, Giles. Empirismo e subjetividade : ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. São Paulo: Editora 34, 2001.