sobre o anti-encontro de 10 de Novembro
Primeiramente, digo que este será um antiprotocolo porque ele não vai relatar o que foi falado do último encontro, porque a maior parte do que se discutiu ali (além do protocolo do Júlio e do maravilhoso exercício-gráfico proposto por ele) não foi sobre as dificuldades de trabalhar colaborativamente ou sobre os processos, mas sobre a atitude dos alunos de direção neste curso, neste semestre.
Assim, pensei que um relato documental disso seria inútil e prefiro usar o que aconteceu para compartilhar algumas idéias que tenho tido e que acho fundamentais de serem pensadas por esses cinco diretores em (difícil) formação – eu, inclusive.
No início da disciplina Direção II, o Tó nos falou sobre a polêmica que é um curso de direção teatral no bacharelado de uma formação acadêmica. É que algumas linhas de pensamento colocam a Direção apenas como possibilidade formativa na pós-graduação, considerando que os alunos da graduação ainda não têm maturidade acadêmica e artística para enfrentar o trabalho da direção.
Antônio Araújo defendeu a habilitação em direção na graduação ao relatar experiências que provavam que o resultado dos trabalhos independia da idade do diretor, mas de uma intuição artística que mais tinha a ver com sua forma de organizar os materiais do que com sua vivência acumulada. Apesar disso, de início, mesmo sendo um aluno da direção, senti que os argumentos daqueles que defendiam o curso de direção na pós-graduação eram mais fortes. Na verdade, eu mesmo me sentia bem deslocado ali e, devida a minha parca experiência em teatro, me sentia despreparado para dirigir. Me sentia um cego guiando cegos, para usar a imagem que Cibele Forjaz usou em seu texto-relato sobre o processo colaborativo de Rainha[(s)]:
A minha função ali, principalmente no período de criação dramatúrgica, era muito clara: eu não poderia ser “a” criadora do espetáculo, ou de seus conceitos fundamentais, que deveriam se urdir necessariamente em conjunto, vindos do próprio não saber, nossa maior dificuldade e, ao mesmo tempo, nossa grande riqueza potencial.
Hoje, a partir de algumas experiências obtidas ao longo do ano e após refletir sobre o tema do anti-encontro passado, cheguei a algumas conclusões sobre o tema.
A formação em direção teatral no CAC é uma formação que tem a ver com um trabalho muito intuitivo. A partir de um texto ou tema – ou às vezes nem isso – os diretores são impelidos a dar a suas concepções artísticas sobre cenas de Shakespeare, Tchekov, Tennessee Williams... Isso, sem antes nunca ter lido nada sobre o que seja encenação. Isso, sem uma base qualquer do que tenham pensado Stanislavsky, Meyerhold, Craig, Zeami, Brecht, Artaud, a não ser que o aluno tenha, de livre e espontânea vontade, comprado um dos livros desses autores em alguma feira do livro.
Eu espero não estar com isso pedindo que peguem em nossa mão e expliquem como esses encenadores encenavam para que tenhamos modelos para copiar, mas o que vejo quando assisto as cenas no CAC, por vezes, é um punhado de trabalhos sem mestres. E isso não está só nas cenas de direção, mas nos PTs, trabalhos de licenciatura, etc... Parece que o vício da formação técnica nos ronda de tal maneira que passamos horas fazendo aulas de canto, e não temos nenhuma aula de encenação teórica.
Desde o segundo ano eu estudo teatro japonês por conta própria e se tem uma coisa que eu leio e admiro muito naqueles trabalhos é que nada ali surge sem anos e anos de pura observação dos mestres. A autonomia artística no Japão é uma conquista de anos e não uma reivindicação autocentrada de um estudante pseudo-engajado. Como afirma Pronko em Teatro Leste e Oeste, “as tradições não se formam de um dia para o outro, nem crescem sem devoção, sacrifício, disciplina, consagração.” Acredito muito nisso.
E então quando nos deparamos com uma estrutura curricular até interessante que propõe
Direção I: concepção livre de uma cena de um texto pronto, sem alterar o texto, ao longo de um semestre.
Direção II: exercícios textocêntricos e cenocêntricos em torno de uma dramaturgia prévia.
Direção III: exercício de constituição de uma cena sem dramaturgia prévia com presença do dramaturgo em sala de ensaio.
PT: exercício livre de montagem de qualquer coisa a partir de qualquer estímulo.
Vemos uma estrutura prática altamente interessante e que proporciona uma experiência em que a autonomia se conquista aos poucos, mas que não dá base teórica para além das discussões dos próprios projetos. É claro que em contraponto a isso, quando penso no direção III, vem as frases do Antônio Araújo ecoando... “não é a obra da sua vida”, “não precisa dar certo”, “não precisa ser bom”, “é só uma experiência dentre muitas”...
Já não deu certo. Ok.
Já não é a obra da minha vida. Ok.
Eu já aprendi muito com todo esse processo, pela dor, mas aprendi.
Mas o que, de fato, fica? Um trauma? Um não querer nunca mais trabalhar colaborativamente? Uma rejeição as pessoas, a idéia, a tudo? Um cansaço?
Não estou dizendo que não se aprenda com a experiência e que não tenhamos que encontrar modelos menos caretas para o ensino do teatro, mas eu particularmente sinto falta da caretice de algumas aulas. De abrirmos Minha Vida Na Arte juntos e lermos e discutirmos um parágrafo como
Esse desdobramento entre o corpo e alma os artistas o experimentam e vivem na maior parte da sua vida: do meio dia às quatro e meia durante os ensaios, e das oito às doze da noite, durante os espetáculos, e isto quase todos os dias. Ao procurarmos a saída para essa situação insuportável de uma pessoa exposta a força á exibição pública e obrigada, contra sua vontade e necessidade, a produzir impressão sobre espectadores, recorremos a técnicas falsas artificiais de representação teatral e nos habituamos a elas.
Pego o Stanislavsky quase como uma provocação.
O teatro pseudo-contemporâneo fala desse encenador como seu fosse porcaria ultrapassada, mas nesse trecho – pra mim – ele traz uma questão muito real, viva e presente no meio dia-a-dia e que tem tudo a ver com o direção III do departamento de Artes Cênicas na ECA USP em 2009 que é: E os atores? Onde é que eles ficam em tudo isso?
Sem créditos, trabalhando de livre e espontânea vontade, estando na USP em feriados, ensaiando incessantemente aos finais de semana e pra quê? Isso é colaborativo? Que autoria é essa que estamos reclamando ou de que estamos falando?
Enfim, eu sei que estou misturando muitos assuntos, mas acho que o foco de tudo isso é: como repensar a formação de direção teatral na graduação de forma que não fiquemos tão perdidos? Posso estar fazendo drama ou pedindo colo, mas apesar de todo o aprendizado desse semestre, não sinto que foi nada saudável. Me senti por vezes arrastando dramaturgos e atrizes nas costas. Me senti por vezes, apesar das três aulas de direção no semestre, perdido. E quando me é requerido ler o teatro musical de Meyerhold ou os processos criativos de bob Wilson eu acho tudo lindo e muito interessante, mas aquilo tudo não parece fazer parte da minha realidade de como entender o que é um argumento.
E eu volto a proposta curricular do curso de direção e a pergunta que me vem a cabeça é: tudo isso é em nome de quê, mesmo?
De aprender a trabalhar colaborativamente. De repensar as questões de autoria. Na aula de Antônio Araújo lemos Barthes e Foucault que trazem a discussão sobre autor e autoria.
O autor – ou o que eu tentei descrever como a função autor – é, sem dúvida, apenas uma das especificações possíveis da função sujeito. Especificação possível ou necessária? Tendo em vista as modificações históricas ocorridas, não parece indispensável, longe disso, que a função autor permaneça constante em sua forma, em sua complexidade, e mesmo em sua existência.
A imagem de Foucault é absolutamente precisa: não existe um autor se não existir um sujeito. Uma coisa é pré-requisito para a outra. E como podemos pensar as questões de autoria e colocá-las em debate se ainda não temos discutidas e repensadas as questões dos sujeitos? Não vi isso como pauta de debate em nenhum momento. Fica a dica para o direção III - 2010...
Essas pessoas que estão sendo formadas e que se matam em horas de ensaio tentando achar um argumento, elas estão minimamente formadas enquanto sujeitos?
Posso estar colocando as coisas num nível meio inalcançável e fatalista, mas o fato é que pedagogicamente me sinto impelido a entrar num processo (e, pior, carregar pessoas junto comigo) no qual se os parâmetros já são frágeis para os professores, que dirá para os alunos.
Eu preferia, talvez, passar toda a minha graduação montando textos de dramaturgia pronta e sair da faculdade cospindo fogo de ódio e falando que vou mudar tudo e nunca mais montar dramaturgia pronta, mas estar seguro disso, a me lançar num projeto de arestas frágeis. Não me condenem: não estou falando o que eu preferia em termos de prazer, de achar legal... mas em termos pedagógicos, formativos.
Careta? Talvez...
Utilizo-me então de uma comparação talvez frágil, mas que me serve de base. Nesse ano, desde março, paralelo aos processos de direção II e III, eu fui convidado para dirigir um processo colaborativo que partiria de textos de Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector. Eu não tinha nem passado por direção II quando tudo começou. Não tínhamos dramaturgo, iluminador, cenógrafo... Três atrizes e um diretor-perdido.
Como todos sabem, atualmente os processos de PT tem uma orientação muito fraca que aparece de vez em nunca para assistir o que se está produzindo. Assim, mais livres e com menos baldes de informação na cabeça, ao longo de um ano, com as mesmas crises e abandonos, fizemos um espetáculo e passamos pelos testes de argumento, premissa, workshops...
Nada disso tinha esses nomes técnicos que hoje eu domino um pouco mais... Era tudo mais simples: a gente tem que fazer uma peça com esses autores, mas tem que ser uma peça que a gente goste. Achamos um tema e concretamente passei por todas as fases que passei no direção III, mas elas vieram não como uma lição de casa a ser apresentada na próxima aula: vieram naturalmente, da necessidade de concretizar um projeto. Atualmente, acho muito mais real, sincera e pedagogicamente mais rica a experiência desse PT que dirigi do que do direção III. Não digo que o resultado tenha ficado perfeito, mas ele foi de verdade um trabalho de pesquisa, com mestres e sem uma peça saída a fórceps.
Na semana passada, esse protocolo terminava com um convite para assistir ao Anima que estava em cartaz no teatro Alfredo Mesquita e que tem até blog
www.animapeca.blogspot.com
No entanto, agora que a primeiro temporada já passou (voltamos no TUSP em 2010), gostaria de terminar esse protocolo dizendo que odiei e amei todas as pessoas envolvidas nesse trabalho ao longo do semestre. Todas, mesmo, desde as atrizes, os dramaturgos até os alunos e professores de direção e dramaturgia. E todo esse ódio e amor, me fizeram pensar sobre o teatro que eu quero e que me interessa fazer. A Maria Thaís, desde o primeiro ano, nos instiga a pensar nisso: qual é o meu teatro? De certa forma, Bulhões tenta a mesma indagação com uma pergunta menos pretensiosa: o que você quer do público?
De uma forma ou de outra, não consigo responder ainda a nenhuma das duas perguntas, mas vendo os trabalhos dos outros diretores e o meu próprio, consigo delinear algumas coisas que nesse momento pra mim fazem sentido. A primeira tem a ver com pretensão. Sou muito pretensioso. De uma pretensão que chega a parecer arrogância, mas tem a ver com o fato de eu não ser o tipo de diretor que compro um projeto apenas por achar engraçado ou curioso. Gosto dos grandes temas. E tenho consciência de que foi essa pretensão que me fez ter a maior parte das dificuldades que tive com relação a esse processo, mas pra mim é melhor isso do que entrar num projeto que não me diz nada ou não está em diálogo com alguma questão (e não tem a ver com questões formais, mas de conteúdo mesmo) que esteja me incomodando.
E essa pretensão gerou problemas difíceis com as atrizes, pois falar do corpo em 2009 com pessoas (eu, inclusive) imaturas e que tem questões com o próprio o corpo era quase arrogância. No entanto, foi essa pretensão que me fez descobrir uma outra característica que tem a ver com o “meu teatro”: eu não estou disposto a passar por cima das pessoas, para fazer a peça que eu quero.
E se as minhas atrizes ou atores não se sentirem prontos, um dia, para fazer determinada cena, eu prefiro mudar a peça e o tema, mas não as pessoas, por mais gagas que elas sejam. Por outro lado, acho que é possível sempre trabalhar o máximo para quebrar junto com essas pessoas as barreiras que acharmos necessárias ser quebradas para um trabalho artístico mais potente. O problema é que isso leva tempo, um tempo maior que um tempo de direção III.
Enfim, espero que algo que eu tenha escrito aqui tenha reverberado, para além do desabafo.
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