referente ao encontro de 29 de Setembro de 2009
Se o novo teatro torna-se dinâmico, então que ele o seja completamente. Queremos nos reunir para criar, para “agir” em conjunto, e não somente para contemplar.
MEYERHOLD, Vsévolod. [1]
O tema é complexidade.
Por vezes nascidas de improvisos com estímulos diversos, as cenas produzidas no colaborativo trazem em si um discurso simplório. Como discurso entende-se aqui o sentido da cena que pode ser textual-verbal, imagético, musical, plástico, etc... Assim, caberá também ao diretor ajudar a criar camadas de complexidade para estas cenas, para que o discurso não seja unívoco. Quantas vezes um ator não diz “eu te amo”, vestido de vermelho, com uma música romântica, com uma caixa de bombons na mão quando você pede a ele uma cena sobre o amor?
Pensando sobre esse ponto da complexidade do discurso, acho que o diretor pode atuar em duas frentes. A primeira é no ato de pedir o improviso, porque a forma como se pede uma cena se relaciona quase sempre diretamente com seu resultado. Isso pode parecer óbvio, mas geralmente uma cena simplória nasce de um pedido de improviso simplório como “improvisem sobre o amor”, o que reforça a idéia exposta no protocolo quinto de que a forma com que o improviso é pedido é fundamental para o desenvolvimento do trabalho.
Outra frente de atuação é na crítica à cena e na forma de pedir uma reformulação da mesma tanto para o ator, no caso dele refazê-la, quanto para o dramaturgo, no caso de pedir ao dramaturgo que se aproveite da cena feita pelo ator para construir uma outra, mais complexa, e com diferentes camadas de leitura. Fazer, por exemplo, com que a cena do improviso sobre o amor possa vir, numa nova visada, com um ator dizendo “eu te amo”, mas desta vez em cima de uma vaca, com uma coroa na cabeça e com um punk rock de fundo.
O exemplo é banal, mas serve pra discutirmos um procedimento muito discutido em nosso encontro: o estranhamento. Como nós estranhamos uma cena? O que, diabos, Brecht queria dizer com isso? Definimos estranhamento aqui como o procedimento de justapor, em cena, camadas de discurso que não dizem a mesma coisa, que criam ruído, conflito... Um conflito que não necessariamente precisa ser resolvido, mas cuja potência de sua pulsão dê ao espectador margem para imaginação, para distanciar-se criticamente do modelo dramático, enfim, para pensar. Uma cena cujo sentido não é de revelação de idéias, mas de exposição de contrastes.
Essa idéia se relaciona diretamente com as práticas mais contemporâneas do fazer teatral que pressupõem a pedagogia do espectador [2]: uma cena que deixa em aberto o problema, expõe a ferida, sem curar. Mas como colocar ponto de vista numa cena destas? É possível estabelecer uma opinião clara, numa cena em que a idéia é substituída pelo espaço que é deixado entre idéias?
Para isso, recorro às idéias de um encenador de cujas idéias Brecht bebeu na fonte, ainda que não pudesse dizer: Meyerhold. Um movimento interessante de se observar na poética desse encenador russo, mais precisamente a partir de 1917, é o seu engajamento político aliado a um projeto artístico absolutamente preciso.
O Outubro das artes significa lutar contra a tendência puramente educativa, que lança o proletariado à mercê da ideologia feudal e burguesa.
O Outubro das artes significa buscar formas adequadas ao conteúdo vulcânico de nosso tempo. Viva ao grande Outubro das Artes!
idem. p.202
Walter Benjamin, um dos amigos mais próximos de Brecht e um de seus maiores estudiosos, notou que os atores de Meyerhold eram únicos porque podiam simultaneamente atuar e pensar. Da tomada de consciência do ator para a do espectador há uma linha muito tênue que configura um círculo de mútua interação e criatividade.
EATON, Katherine [3]
É óbvio que para isso não existe fórmula, mas no projeto de Meyerhold encontramos inspiração para um teatro ao mesmo tempo político e responsável por trazer à tradição russa características épicas/estranhadas de uma cena que o encenador foi buscar nas tradições populares e orientais. Elementos de uma cena musical e grotesca. Meyerhold, nos Textos Teóricos, afirma que se o teatro da convenção exclui a ribalta deixando a interpretação do ator ao ritmo da dicção e dos movimentos plásticos, obrigará o espectador a um exercício de escuta, a uma participação ativa[4], a um esforço que em última instância é também político.
Daí lembramos a diferença entre dialética e dicotomia, ou seja, a questão não consiste em dar os dois lados da moeda, mas em criar ruído na colocação de camadas de discursos que, em choque, criem uma fricção potente. Mas será essa a única maneira de estranhar? Ou melhor, será o estranhamento a única maneira de fugir de uma cena unívoca? O próprio Brecht enumera em seus textos outros procedimentos como songs, rompimento da quarta parede, elementos do grotesco, etc... No entanto, se entendermos estranhamento de uma maneira genérica, podemos dizer que é uma boa palavra para definir essa sobreposição de discursos. Como disse Chiquinho Medeiros em uma das aulas de Intepretação esse ano, o teatro não existe mais para dar respostas, mas para fazer perguntas.
No encontro falamos da estrutura do colaborativo não como um sonho utópico, um tipo de projeto que tem forma definida e que todos devemos atingir, mas como uma realidade concreta: o curso de Direção Teatral III do departamento de artes cênicas da ECA/USP. Um processo colaborativo em que só o diretor e o dramaturgo estão sendo avaliados, feito em quatro meses, com atores que estão ali ou por amarem as pessoas ou ao projeto. Um processo colaborativo dentro de um curso de diretores que nunca fizeram dramaturgia na vida, que não tem idéia do que sejam um “argumento” ou uma “premissa”. De diretores que acabaram de sair de um processo mais centralizador, autocrático, com um texto clássico do qual nós não podiam mudar uma vírgula.
Aqui estamos. Sem drama, mas em crise.
Por quanto tempo poderemos improvisar livremente sem termos um Norte? Onde está o Norte? O diretor é quem define, cada um escolhe o seu? É possível definir junto? Como eu faço para transformar essas improvisações numa cena? Eu escrevo um roteiro ou peço para o dramaturgo escrever?
Tenho a sensação de que os ensaios mais produtivos são os menos colaborativos. É normal ou eu tô doente? Mas o que, diabos, é ser colaborativo? Parecem perguntas iniciais, dignas de um primeiro protocolo, mas são perguntas que freqüentemente retornam e voltam com uma força cada vez mais avassaladora porque o tempo pressiona sempre e indistintamente para frente e quando vemos faltam oito semanas para o semestre acabar.
Chegamos então a uma pergunta que nos parece mais justa: que colaboratividade é possível neste processo de direção III do CAC? Uma colaboratividade a lá Vertigem? Ou a lá Latão? Ou a lá Cia Livre? Grupo XIX? Cia dos Atores? Nenhum deles provavelmente.
Estudo de caso.
Nessa semana uma atriz veio conversar comigo e pediu que eu, não os dramaturgos (e isso ela deixou claro), escrevesse um texto pra ela dizer na cena dela, e então me descreveu como ela estava pensando a cena. Fiz e ela adorou, o que produziu uma cena que poderá ser germe para uma cena muito boa no futuro, mas alguma coisa dentro de mim me disse que eu burlei as regras, passei por cima dos dramaturgos e... Enfim, sem culpa. Mas aí, em ensaio, com o dramaturgo presente, eu e os atores começamos a esboçar um roteiro do que tínhamos. Ficamos animados ao ver uma peça surgindo. Tinha espaço pro dramaturgo entrar, ele estava presente e eu freqüentemente perguntava coisas a ele que vinham em respostas lacônicas. Um primeiro esboço de roteiro se fez, sem muita interferência do dramaturgo e mais uma vez me senti um trator que passava por cima de qualquer colaboratividade possível.
Quem, afinal, abre o espaço? O espaço para falar, opinar, estava ali, aberto, claro. Mas a resposta foi silêncio. Eu perguntava o que ele achava... e nada. Logo depois conversamos, ele disse que não entendia direito a metodologia de trabalho e que não falou nada porque se sentia contemplado pelo que os outros disseram.
Quanto à história de metodologia, tem a ver com ele ter vindo do cinema, de fazer roteiros de filmes, onde tudo é mais quadrado, não existe colaboratividade e a própria estrutura dos argumentos são mais dramáticas e psicológicas. Sabendo disso, desde o começo tenho me esforçado para incluí-lo nesse outro tipo de procedimento que nem eu conheço. Mas até que ponto eu vou ter que bancar o “tio de artes” que tenta incluir até mesmo os que não se esforçam para ser incluídos? Sinto que não tenho didática e nem tempo pra isso.
Ainda é colaborativo se os atores e o diretor, juntos, fizerem a dramaturgia? Eu penso que sim e lembro-me da experiência de Rainha[(s)] – duas atrizes em busca de um coração, espetáculo dirigido por Cibele Forjaz com Georgette Fadel e Isabel Teixeira. Partindo do Maria Stuart de Schiller, duas atrizes e uma diretora escreveram uma peça “com o sangue de seus corações ralados” e, colaborativamente, fizeram uma peça que fala da dificuldade de ser mulher-Rainha.
http://www.youtube.com/watch?v=XRi5yPlRZJ8
Sem pretender aqui fazer uma crítica do espetáculo, Rainha[(s)] constitui-se numa experiência fantástica principalmente para alunos de Direção porque o espetáculo se revela como tal e basta um olhar um pouco mais aguçado para ver ali os recursos de encenação de que Cibele Forjaz lança mão para dizer através do texto de Schiller o que ela e aquelas duas atrizes quiseram dizer sem, porém, nenhum rebaixamento poético ou político da peça. Uma experiência, aliás, que comparada à recente montagem textocêntrica de Maria Stuart por Antonio Gilberto, atualmente em cartaz no SESC Consolação, revela as diferenças de propósito e de utilização de um mesmo texto em dois processos absolutamente diferentes.
http://www.dzai.com.br/diversao/video/playvideo?tv_vid_id=57112
Cito as Rainha[(s)] também porque esse ano estou passando por uma experiência parecida quando fui convidado, no começo do ano, para dirigir duas atrizes numa peça que nós mesmos escrevemos e que estréia mês que vem. Não estou dizendo que seja uma fórmula, nem que assim seja mais ou menos dolorido e nem que eu tenha desistido dos dramaturgos. A crise existe de qualquer forma e ela é sempre de ouro, mas apenas a título de exemplo penso em maneiras de compor o colaborativo de outras formas que sejam verdadeiras para as pessoas envolvidas no projeto, porque, afinal, qual é o motivo de se fazer um colaborativo?
No curso de Direção, uma ferramenta pedagógica. Mas historicamente, no Brasil
[...] os grupos aumentaram em número, contrapondo-se aos chamados “elencos” - artistas reunidos para uma determinada montagem e que, ao final da temporada, dispersavam-se, indo em busca do próximo trabalho. Redescobriu-se o aspecto ritual e coletivo do teatro, com franca inspiração em Antonin Artaud, Jerzy Grotowski e no grupo Living Theatre, e o aspecto lúdico despertado pelos jogos e improvisações. No aspecto político, uma produção eminentemente grupal representava uma espécie de “democratização” da arte: ela era criada por e para as massas, estimulando a produção cooperativada pelos artistas envolvidos, que puderam libertar-se da figura do produtor e, conseqüentemente, da necessidade de se fazer um teatro dito comercial.
NICOLETE, Adélia. [5]
Nesse sentido, volto à pergunta do início que é: que colaboratividade é possível? Que colaboratividade queremos para esse processo nesse momento? Para concluir pensei em um texto filosófico que embasasse nossas últimas reflexões, mas não encontrando cito abaixo um trecho de E a carne se fez Verbo que eu leio sempre em processo sob a justificativa de acalmar os ânimos, afinal, se até o Teatro da Vertigem se dá ao luxo de entrar em crise, nós também podemos.
Quando será que essa dramaturgia vai ficar pronta? Quando será que vamos parar de reescrever esta cena? Algum dia esse roteiro vai ficar bom? O prazer de trabalhar com dramaturgos antigabinetes, antitorres-de-marfim. Generosos e arrojados. Sem preguiça de ouvir as necessidades que nascem na sala de ensaio, sem pudor de jogar seu texto fora se a cena assim o pedir. [...] Vontade de ir embora, vontade de que o outro vá embora. [...] Quando é que você vai entender que essa peça não tem fumaça?
ARAÚJO, Antônio [6]
[1] Textos Teóricos. Imprenta de La Comunidad de Madrid. Madri – 1992. p.174
[2] Termo usado por Flávio Desgranges em seu livro homônimo.
[3] The Theater of Meyerhold and Brecht. Contributions in Drama and Theatre Studies, n.19. Greeword Press. London. E-book disponível a julho de 2008 em www.questia.com
[4] MEYERHOLD, V. Textos Teóricos. Imprenta de La Comunidad de Madrid. Madri – 1992. p.173 -177.
[5] Criação coletiva e processo colaborativo : algumas semelhanças e diferenças no trabalho dramatúrgico. Sala Preta, São Paulo, v. 2, n. 2, p 318-325, 2002.
[6] E a Carne se Fez Verbo. In: NESTROVSKI, Arthur (Ed.) ; ARAUJO, Antonio. (Org.). Trilogia Biblica - Teatro da Vertigem. 1ª ed. São Paulo: Publifolha, 2002, v. 1, p. 81-85.
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